Opinião
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9 de janeiro de 2024
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07:01

O último homem branco – pardos são maioria (Coluna da APPOA)

IBGE mostra também crescimento da proporção de pretos. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
IBGE mostra também crescimento da proporção de pretos. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Robson de Freitas Pereira (*)

Notícia do IBGE no final do ano de 2023: população que se auto-denomina parda cresce no Brasil e, pela primeira vez na história do censo (que iniciou em 1872), torna-se majoritária. O que uma vez foi motivo de constrangimento, hoje é mote de afirmação/orgulho. Sinal de mudanças, lentas, menores do que gostaríamos e que precisam de elaboração e leitura atenta. 

Salto para a ficção explícita. Terminei de ler emocionado o último homem branco, livro de Mohsin Hamid [1]. O final lírico, transformou literariamente uma cena comum, que através da escrita transcendeu o banal – uma filha adolescente entra no quarto dos pais, deita-se entre eles, olhando para a mãe, de costas para o pai. 

O olhar paterno  que percorre os cabelos, o delineado do rosto, os ombros faz o presente e o futuro se condensarem num instante onde aquele pai vislumbra o crescimento da filha, seu envelhecer e revive sua história. 

Uma história de perdas, lutos, amor e reconstrução. Me senti tocado também em outros momentos da leitura desta novela que enlaça as consequências sociais e íntimas com uma ficção que dialoga nossa atualidade e suas fantasias para o bem e para o mal. Social e intimamente. Logo no inicio, a cena do despertar de Anders, o primeiro homem branco da cidade a se transformar e acordar preto, pardo, marrom, (brown, dark people) ou qualquer outra denominação utilizada para identificar os negros recém modificados e expressar a perda da branquitude e tudo o que ela representa. Passado o impacto inicial, vieram as dificuldades de retomar uma vida cotidiana.

Anders demorou um tempo até contar para o pai o que acontecera. Primeiro sentiu falta da mãe que falecera há alguns anos; era sua primeira ouvinte. Depois contou para Oona, sua amiga e amante que ele esperava que continuasse a ser, depois que o visse transformado. Somente quando começou a sentir-se ameaçado pelos olhares, nos lugares onde antes costumeiramente circulava, resolveu conversar com pai. Pelo telefone , a conversa foi rápida. Ele queria ver para crer. Afinal, o filho poderia estar bêbado ou drogado; pois há algum tempo ele sabia que costumeiramente o rapaz gostava de fumar um.

Quando recebeu, de rifle em punho, uma “visita” inesperada de militantes supremacistas, um deles até era seu vizinho, pensou que chegara o momento de mudar de endereço. O pai, contramestre de obras, magro, doente, mas que não aceitava consultar médicos; pois não confiava neles, recebeu o filho que se parecia com a mãe e “era mais meigo do que seria aconselhável para ele”. Contudo, o mais importante, era de que não importava a cor da pele, era seu filho “e ele vinha primeiro, antes de qualquer outra lealdade…estava disposto a fazer a coisa certa por seu filho, era um dever que significava mais que a vida”, não interessando o quanto de vida lhe restasse. Nesta aproximação, Anders pode perceber o grau de dor física que o pai vinha suportando. Esta batalha ele estava perdendo.

A mãe de Oona era diferente. Primeiro ficou assustada com o que via e ouvia nas redes sociais. Começou acreditando nas fake news que expressavam os piores pesadelos dos racistas. Afinal uma espécie de pandemia, sem volta, estava “infectando” a todos e era só uma questão de tempo chegar até elas. A minoria branca devia se mobilizar. Com isso, os conflitos urbanos se acirraram. Tiroteios, incêndios e outros horrores faziam o cotidiano da mãe. Até que um dia , além de namorar aquele rapaz escuro, sua filha também se transformou e, esta foi sua prova, seu choque de realidade. O que também anunciava a proximidade de sua própria transformação. Ela foi uma das últimas pessoas da cidade. Pouco depois, o pai de Anders morreu. Foi o último homem pálido a ter seu corpo entregue à terra, depois dele, não houve mais nenhum. 

Voltando ao censo do IBGE, Muniz Sodré comentou [2]: “…esse desejo de morte, genocida, foi vencido pela vontade vital: dez por cento declaram-se negros, a maioria se diz parda, gradação cromática…Hoje, negro é pertencimento político-existencial, embasado num fenótipo que varia do mais ao menos escuro, dito pardo.” Embora a maioria numérica, ainda falta um longo caminho para uma cidadania de fato e de direito ser atingida plenamente. 

Mohsin Hamid, paquistanês de origem, levou algum tempo para concluir seu romance. Estava sendo gestado desde o 11 de setembro de 2001, quando ele viveu na pele os efeitos da exclusão étnico-racial. Apesar da formação nos EUA, posição social, passou a ser olhado com desconfiança nas ruas e ser abordado pela polícia com muita frequência. Sem falar nos procedimentos alfandegários onde era questionado e revistado minuciosamente. Isso o levou a retornar ao Paquistão e refazer sua vida. Tenhamos em mente que Lahore não é nenhum oásis de paz e tranquilidade. Quem quiser saber mais detalhes pode ler “O fundamentalista relutante” ou “Passagem para o ocidente”, dois de seus outros livros. 

Este enlace entre a ficção literária e a realidade nos interessa. Entre outras razões, porque além da verdade ter estrutura de ficção,  através dele podemos reconhecer que isso não só nos ajuda  a  “adiar o fim do mundo”. Podemos experimentar fragmentos de futuro onde a palavra sustenta o desejo de inventar uma vida que valha a pena ser vivida.

Notas

[1] O último homem branco. Mohsin Hamid. Cia das Letras.

[2] Muniz Sodré, FSP, 06/01/2024.

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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