Opinião
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8 de janeiro de 2024
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17:04

Desrotulando o direito penal: crime de Golpe de Estado (por João Beccon de Almeida Neto)

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

João Beccon de Almeida Neto (*)

Dia 08/01/2024 completa-se um ano dos atos aos três poderes que marcaram boa parte do nosso ano de 2023. Teremos muitas manifestações sustentando diferentes narrativas sobre o mesmo dia. E proponho discutir o crime de golpe de Estado, previsto no artigo 359-M do Código Penal. Esse artigo foi incluído pela lei 14.197 de 2021. Ela revogou a Lei de Segurança Nacional que vigorava desde 1983. Por sua vez, antes desta, tivemos uma série de normas prevendo crimes de proteção a segurança nacional e isso não é exclusividade brasileira. Mas o que é crime neste sentido? E historicamente como tratamos desse tipo penal? 


Bom, num primeiro momento, temos a sensação e o desejo de afirmar que está ligado a divisão do certo e errado. De fato este é o objetivo da lei. Mas como definimos isso? O crime protege um valor ou interesse socialmente relevante. Então, naturalmente que isso vai depender do contexto histórico. Aí tu me diz, não pode ser, o certo é o certo e pronto, não depende do tempo. Matar, furtar, roubar sempre será errado, certo? Mas mesmos esses atos, dependendo do contexto, podem não ser crimes. 

Então, o conceito de crime até século XIX era diferente, e tinha relação com o conceito de pecado. Por isso que, na conhecida Idade Média, por exemplo, temos como referências os tribunais inquisitoriais para julgamento dos crimes de heresias. 

Vejam, neste contexto, o crime era um comportamento que iria contra à Deus, sendo importante mencionar que a religião fazia parte da constituição do poder estatal, pois muitos dos países ocidentais eram governados por reinados, cuja coroação e, portanto, legitimidade dependia também da validação da autoridade máxima religiosa. Isso significa que crime também é um conceito político, e assim sujeito às influências do discurso dominante. Por isso, até pouco tempo a legislação em muitos países o crime de sodomia (que inclusive tem origem bíblica da cidade de Sodoma, que assim como Gomorra teria sido destruída por Deus com fogo), ou a criminalização da vadiagem, como forma que controle social em razão do próprio crescimento populacional urbana.

Sim, o direito penal nasce como ferramenta de controle social  e assim sujeito ao desejo do governante. E governante, não significa uma pessoa somente, mesmo em um reinado, a corte se mantém pois há os privilegiados que a sustenta e estes também interferem na própria formação da lei e assim do que é considerado mais grave como crime. 

Uso ou não mais intenso ou não de normas controladoras como o direito penal está intimamente ligado a gradação do poder arbitrário do governante. Por isso que vamos verificar com frequência o uso de execuções criminais públicas em estados ditatoriais ou o uso do discurso da ordem e segurança com mais frequência e em mais casos. A relativização do uso da força e, portanto, do direito penal é usada como justificativa. Assim, no Brasil, ao longo dos anos dos governos militares, vamos vislumbrar uma série de decretos desde os anos 1960 até 1983 em busca da manutenção da segurança nacional e associando o controle aos órgãos de segurança, em especial militares. Mas com a formação do estado democrático, vamos observar o uso menos frequente dessas normas, claro que outras eventualmente serão utilizadas, mas aí mais intimamente ligadas a determinadas classes sociais. A lei de 2021 nasce em um período democrático e não se utiliza mais do termo segurança nacional. Claro que uso não garante que lei possa ser utilizada de forma arbitrária, mas o que marca uma democracia são as possibilidades de revisão e reanálise das decisões. 

(*) Advogado Criminalista, Professor da Unipampa, @joao_beccon

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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