Opinião
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23 de janeiro de 2024
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16:52

A primeira encruzilhada do Supremo em 2024 (por Antonio Escosteguy Castro)

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Antonio Escosteguy Castro (*)

Está pautado para o próximo dia 8 de fevereiro , no Pleno do STF, o julgamento da Reclamação 64018 , proposta pela Rappi do Brasil contra decisão do TRT da 3ª Região que havia reconhecido o vínculo de emprego de entregador (rider) , com um alcance que pode afastar a competência da Justiça do Trabalho para o tema do trabalho plataformizado.

O que primeiro chama atenção nesse julgamento é a pressa do Supremo em definir esse tema , com tão amplo alcance. Foi em 2023 que se tornaram mais comuns essas reclamações , em geral decididas  monocraticamente por ministros do STF, contra decisões da Justiça do Trabalho que reconheciam o vínculo de emprego para trabalhadores plataformizados. O tema, portanto, é complexo e recente. Parece haver a necessidade de julgá-lo ainda antes da chegada de Flávio Dino na Corte, marcada para 22 de fevereiro, em substituição a Rosa Weber que, destarte seus belos votos em Direito do Trabalho, nunca conseguiu articular uma maioria que lhes desse eficácia.

A troika que hoje hegemoniza o STF (Moraes/Gilmar/Barroso) tem utilizado a legitimidade e a força jurídica e política que lhes concede um impecável trabalho em defesa do Estado Democrático de Direito , com o desmantelamento da Operação Lava Jato e, principalmente, com as medidas para combater e reprimir a tentativa de golpe do 8 de janeiro de 2023 , para impor um bloco liberalizante de decisões que faria inveja a Javier Milei, o instável anarcocapitalista dos pagos argentinos.

Os antecedentes recentes dessa ofensiva ultraliberal foram as decisões do STF , capitaneadas pelo Min. Barroso (ADC 48, ADPF 324 , Tema 725, entre outras ), que rompendo as travas que a Justiça do Trabalho impunha ( Enunciado 331 do TST) permitiram uma terceirização descontrolada dos serviços em nosso país, que hoje dá origem à verdadeira epidemia de casos de trabalho análogo à escravidão, que se tratam exatamente de consequências diretas de uma terceirização abusiva.

Quanto ao trabalho plataformizado , após histórica decisão da 3ª Turma do TST, da lavra do Ministro Godinho, publicada em abril de 2022 , a Justiça do Trabalho começou a reconhecer a existência do contrato de emprego ( cuja definição está precisamente aposta na CLT) , a partir da verificação da “ subordinação algorítmica” tão bem definida por aquele brilhante magistrado. Por óbvio, tais decisões dizem respeito a casos concretos que lhe foram submetidos , em julgamentos com ampla instrução e contraditório.

Em tese, o trabalho plataformizado pode encetar o reconhecimento de outras formas de relação de trabalho que não exclusivamente o contrato de emprego. Tanto é assim que o Governo Federal criou o “Grupo de Trabalho dos Aplicativos”, para debater com a sociedade uma forma de regular o mercado, permitir a livre concorrência, estimular a iniciativa privada e proteger os trabalhadores. Este Grupo de Trabalho, instituído pelo Decreto 11.513 de 1º de maio de 2023, tem a finalidade de elaborar, de forma tripartite, uma proposta de regulamentação no país das atividades de prestação de serviços, transporte de bens, transporte de pessoas e outras atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas, ouvindo os órgãos estatais, os trabalhadores e as empresas de tecnologia (TIC’s).

Mas não restem dúvidas de que se tratam de relações de trabalho. O fundamental é asseverar que se há uma nova forma de organizar e prestar o trabalho, com maior autonomia e menor subordinação do trabalhador, isto não o transforma em  microempreendedor ou empresário.

No mundo inteiro tem sido essa a tendência: reconhecer relações de trabalho e , portanto, a competência da Justiça do Trabalho para julgá-las.

Nos Estados Unidos , foi regulamentado, em inícios deste ano , o “Fair Labor Standarts Act”, legislação federal que tem entre seus objetivos coibir fraudes à relação de emprego (misclassification). As Supremas Cortes da Califórnia e da Pensilvânia e a Justiça Federal de Nova York reconheceram relações de emprego com as plataformas.

Na França , embora em primeiro grau as plataformas tivessem obtido uma vitória inicial, em março de 2020 a Corte de Cassação prolatou decisão unânime reconhecendo vínculo de emprego entre os motoristas e a Uber.

Na Alemanha , após longa batalha judicial, a Corte Superior Trabalhista pacificou que a relação do trabalhador plataformizado que atua no transporte de passageiros ou entrega é um trabalhador subordinado, reconhecendo igualmente a relação de emprego.

Na Espanha, o Tribunal Supremo, em setembro de 2020, decidiu que a relação entre um entregador e a plataforma digital era relação de  emprego, e em 2021 o país editou uma pioneira Ley de Riders que regula a matéria.

No Reino Unido, a Suprema Corte oscilou entre reconhecer a qualidade de empregado (employee) ou de trabalhador (worker, com menos direitos ) mas nunca duvidou da existência de relação de trabalho nem da competência da Justiça do Trabalho para decidir. ( acesse aqui para ler a íntegra do estudo Análise das relações de trabalho plataformizado no direito comparado e sua repercussão no Brasil e na competência material da Justiça do Trabalho, de João Antonio Ritzel Remédios e Antonio Escosteguy Castro)

Consolida-se, portanto, em todos os países do capitalismo central, que a prestação de serviços plataformizada são relações de trabalho e não civis ou comerciais. Repita-se: não são microempreendedores , como equivocadamente o Ministro Alexandre de Moraes afirma na Reclamação que vai a julgamento no dia 8 de fevereiro.

E se são relações de trabalho , discutir e julgar os casos concretos e apor as consequências da lei é da competência da Justiça do Trabalho. No Brasil, reconhecer e reafirmar isto é apenas dar cumprimento à cláusula expressa de nossa Carta Magna.

O ordenamento jurídico brasileiro já admite a multiplicidade de relações de trabalho. Se em 1988, quando promulgada a Constituição, ainda nos primórdios do avanço tecnológico atual e de suas consequências pelo mundo, o legislador constituinte acolheu o entendimento de que a relação de trabalho protegida era a relação de emprego e estabeleceu a competência da Justiça do Trabalho originalmente para julgar “os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores”, com a Emenda Constitucional nº 45, em 2004, essa Justiça Especializada passou a ser competente para amplamente apreciar e julgar as relações de trabalho, “na forma da lei”.

Assim, não pode o STF, justamente o Guardião da Constituição,  muito menos no julgamento de uma Reclamação, amputar de forma tão severa a competência da Justiça do Trabalho.

Afinal, não é possível defender a Democracia sem garantir um mínimo de dignidade para os trabalhadores.

(*) Advogado

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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