Opinião
|
4 de janeiro de 2024
|
14:54

A cidade deles e a nossa (por Marcelo Soares)

Obras descaracterizaram a  paisagem do Parque Harmonia. Foto: Luiza Castro/Sul21
Obras descaracterizaram a paisagem do Parque Harmonia. Foto: Luiza Castro/Sul21

Marcelo Soares (*)

Já entramos no ano das eleições municipais e, infelizmente, o debate político em Porto Alegre tem girado em torno de possíveis candidaturas, e não de uma caracterização mais aprofundada da atual administração municipal no contexto de avanço do neoliberalismo sobre as cidades, assim como de construção de um programa alternativo de governo.

O que vemos por parte dos partidos de oposição mais à esquerda é uma pessoalização das críticas na figura do atual prefeito Sebastião Melo, demonizando-a, como se ela não expressasse um processo mais amplo de apropriação privada dos espaços e das políticas públicas pelos verdadeiros donos da cidade, os grandes especuladores imobiliários e as empresas de transporte, que nas últimas administrações municipais ampliaram ainda mais um poder que sempre tiveram sobre o nosso espaço urbano.

A visão carrocêntrica herdada de décadas passadas, que glorificava os viadutos, se expressa hoje na busca de construção de mais e mais estacionamentos em áreas públicas, como demonstra o projeto felizmente arquivado de um estacionamento subterrâneo no Parque da Redenção, ou a ampliação daqueles existentes no já privatizado Parque Harmonia, cenário recente do corte de dezenas de árvores, um dos maiores crimes ambientais da história de Porto Alegre, com a cumplicidade da Administração Municipal e omissão do Ministério Público e Poder Judiciário.

Mas por trás dessa visão de cidade, que sacrifica nossos espaços e bens comuns, entendendo-os como fontes de lucros, existe uma visão triunfante de progresso e modernidade que seduz a classe média e uma juventude capturadas pela volúpia do concreto e do neon, que aplaude empreendimentos como o Embarcadero ou o Refúgio do Lago sem se preocupar com os danos ambientais que eles implicam.  O avanço da privatização da Orla do Guaíba  e o projeto de privatização dos nossos Parques Públicos, como o Harmonia, a Redenção e o Marinha do Brasil foi possível não apenas pela ação de gestores “malvados” e empresários espertos e inescrupulosos, mas porque rende votos.

E como a nossa oposição de esquerda reage à esse processo?  Infelizmente, sem romper com a lógica política que tem levado à sucessivas vitórias de candidaturas de direita em Porto Alegre, priorizando decisões restritas às cúpulas partidárias, sem escutar nem debater com a população os nomes da possível chapa majoritária e aqueles pontos programáticos que não podem faltar em um verdadeiro debate sobre a cidade que queremos. O alijamento de Manuela D’Ávila e das e dos vereadores e deputados e deputadas das bancadas negras na Câmara de Vereadores e Assembleia Legislativa, assim como a visita das cúpulas do PT e PSOL à José Fortunatti, solicitando uma contribuição para o Plano de Governo justamente do responsável pelo arboricidio no Gasômetro e parceiro de Administração do atual Prefeito, expressa as dificuldades que a nossa esquerda tem para se colocar à altura das mudanças necessárias para nossa cidade.

Não será pela ausência de debate, ou por um debate feito de cima para baixo, que vamos inverter a lógica que governa Porto Alegre, rompendo com a privatização dos espaços e serviços públicos, a precariedade do transporte coletivo e a gentrificação e higienização que privilegia os interesses de grandes construtoras no centro da cidade e Quarto Distrito.  Não será com governantes ainda presos à uma visão desenvolvimentista de cidade, de estado e de país, que vamos preparar Porto Alegre para reagir aos efeitos de eventos climáticos cada vez mais frequentes, como os que nos atingiram em 2023.

Já conhecemos muito bem e sofremos as consequências do projeto da atual Administração e dos donos da cidade. E qual o projeto, o nosso modelo de cidade? Esse é o debate que tem nos faltado já em pleno ano eleitoral. Não foi minha intenção elencar propostas, até porque entendo que elas devem surgir com um amplo debate com coletivos e movimentos sociais, especialmente os da periferia de Porto Alegre, mas não posso deixar de colocar que o que deve nortear nosso projeto alternativo de cidade é a visão do que alguns autores denominam como comum (commons) urbano, da cidade como comum, ou seja, de bens, espaços e serviços que são coletivamente usados, para além das formas do estado e da mercadoria. Entendo que é a partir dessa noção que podemos construir um programa que se oponha à visão neoliberal de cidade que tem recorrido à privatização e mercantilização dos espaços e serviços públicos, com os graves efeitos ambientais que sentimos na própria pele ano passado, assim como na atual falta de água na periferia de Porto Alegre.

A visão do comum e a luta de movimentos que questionam a atual lógica excludente de cidade, principalmente do movimento ambientalista e das diversas experiências de compartilhamento e fazer comum gestadas nas comunidades periféricas é o que pode fazer a diferença no debate eleitoral em Porto Alegre esse ano. Fica a dúvida se seremos ouvidos para construir a cidade que queremos, ou a oposição ainda entenderá as eleições como uma simples troca de projeto político, mantendo uma lógica de gerenciamento local do sistema capitalista que não avance nas mudanças estruturais necessárias no espaço urbano.

(*) Sociólogo e ativista ambiental

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora