Opinião
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20 de dezembro de 2023
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16:01

Nicarágua: o orteguismo e a mente aprisionada (por William Héctor Gómez Soto)

Freddy Quezada, sociólogo nicaraguense (Foto: Facebook/Reprodução)
Freddy Quezada, sociólogo nicaraguense (Foto: Facebook/Reprodução)

William Héctor Gómez Soto (*)

Freddy Quezada era um garoto da vizinhança, inquieto e inteligente. Eu o via na UNAN (Universidade Nacional Autónoma da Nicarágua), sentado nas escadas dos corredores da universidade, lendo um livro qualquer, próximo ao CUUN (Centro Universitário da Universidade Nacional era o organismo que centralizava todas as associações estudantis das diferentes faculdades e cursos). Creio que foi em 1976. Mais tarde soube que ele fazia parte dos movimentos cristãos, um grupo de jovens de diversas origens sociais que, indignados com a situação socioeconómica da Nicarágua, se opuseram ao regime autoritário de Anastasio Somoza.

Quando a luta contra a ditadura de Somoza se radicalizou, ele aderiu ao sandinismo. Mas era muito crítico para permanecer num movimento inevitavelmente centralizado, baseado na obediência. Era difícil questionar as diretrizes que “vinham de cima”. Qualquer manifestação crítica dentro do sandinismo tinha um alto custo, poucas vezes tratado e discutido. Alguns disseram-lhe que esta centralização e disciplina eram necessárias. Uma condição indispensável para garantir a vitória contra um inimigo poderoso. As coisas pioraram quando essa centralização se tornou política do “novo Estado revolucionário”, que se sucedeu após a vitória popular contra a ditadura de Somoza.

Ele me contou que, logo após o triunfo da revolução de 79, foi distribuir panfletos numa praça onde uma multidão gritava “Direção nacional, ordene!”  (Direção nacional era o comitê dos principais líderes da revolução). Ele e o seu grupo alertavam para as tendências autoritárias da revolução. Ele foi reprimido e assediado por militantes furiosos. Foi expulso da praça e rasgaram seus panfletos. Foi um sinal do que estava por vir, embora a realidade atual, de domínio total de Ortega sobre a sociedade, ultrapasse a imaginação dos críticos.

Fazia tempo que ele havia renunciado a qualquer tipo de militância política quando veio trabalhar no Centro de Pesquisas e Estudos da Reforma Agrária (CIERA) [1]. Uma instituição, como ele me disse uma vez, semelhante ao centro organizado por David Ryazanov, um dissidente do stalinismo. No CIERA dedicou-se com zelo à pesquisa social. Conduziu pesquisas sobre a situação dos camponeses em zonas de guerra e os impactos negativos das políticas agrárias sandinistas. Isso foi em meados dos anos 80.

  Na década de 90, tornou-se professor universitário. Lecionou em diversas universidades de Manágua. Entre os jovens ele estava em seu habitat natural. Lia muito, principalmente filosofia. Ele comentava suas leituras nas redes sociais. De longe eu o seguia e, sem ele saber, fazia uma lista dos livros que ele comentava.

Seus alunos o respeitavam não apenas pelo seu conhecimento, mas também pela sua irreverência contra a arrogância da academia e dos poderosos. Seu objetivo era fazê-los pensar por conta própria.

Na rebelião de abril de 2018, ele ficou indignado com a violência do governo de Ortega contra os jovens. Uma experiência que sofreu em primeira mão durante o regime de Somoza e até com o sandinismo dos anos 80.

Custou-lhe caro. Ele foi demitido. Eles pensaram que isso o silenciaria. Não puderam. Ele continuou escrevendo nas redes sociais. Ele criticou as atrocidades que o governo Ortega fez e continua cometendo, como o fechamento de universidades e jornais independentes. Foi o único crítico que, estando na Nicarágua, desafiou o Orteguismo com suas palavras. Eu lia o que ele escrevia com preocupação. Ele achava que Ortega, depois de ter esmagado a rebelião de abril, não se preocuparia com um velho professor aposentado. Não foi assim. 

Ele sempre respeitou opiniões diferentes. Nunca se preocupou em impor suas ideias e sua forma de ver as coisas, pois sabia que existem muitas formas de ver o mundo. Suas paixões têm sido o café, a leitura, o cinema e a Garota de Ipanema.

E o que eu temia aconteceu. Na tarde de 29 de novembro de 2023, homens armados e vestidos à paisana entraram em sua casa, num bairro da periferia de Manágua.

-Freddy Quezada mora aqui, perguntaram?

-Da parte de quem? – Freddy perguntou, com sua voz suave

– Você é Freddy Quezada? – insistiu um dos homens

– Sim, mas quem é você? – Freddy perguntou, sem resposta.

Três policiais entraram rapidamente e sem qualquer ordem judicial, retiraram sua carteira de identidade, algemaram-no, confiscaram seu celular e o levaram para destino desconhecido. Até hoje, seus familiares não puderam vê-lo. Sua vida está em perigo. Freddy tem 65 anos. Ortega mudou a lei e uma pessoa pode ficar no cárcere por 90 dias para investigação. 

Com milhares de exilados, com o fechamento de jornais e universidades, com a repressão violenta a qualquer manifestação, Nicarágua se tornou uma grande prisão. Hoje há mais de cem prisioneiros políticos.  Ortega tem violado sistematicamente os direitos humanos dos nicaraguenses. Seu discurso populista, como continuador dos ideais da revolução sandinista, confunde às esquerdas no mundo todo, mas é uma tosca ideologia para ocultar o verdadeiro caráter autoritário do orteguismo. 

Ortega quer modificar a história se colocando como o principal protagonista da revolução, mas tem encarcerado a seus companheiros. Em fevereiro do ano passado, Hugo Torres, um dos heróis da insurreição contra Somoza, morreu nos cárceres de Ortega, sem assistência médica nem acusação. Tinha 73 anos.

Como diria meu amigo Freddy, se referindo a Ortega: “Quem não te conheça que te compre”.

Liberdade para Freddy Quezada!

[1] Centro de pesquisa relativamente autônomo vinculado institucionalmente al Ministério de desenvolvimento agropecuário e reforma agrária do governo sandinista nos anos 80. 

(*) Professor universitário – Instituto de filosofia, sociologia e política, IFISP -UFPEL

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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