Opinião
|
13 de novembro de 2023
|
17:21

Farinha pouca, meu projeto primeiro (por Álvaro Santi)

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Álvaro Santi (*)

Em outubro, o governo Eduardo Leite protocolou em regime de urgência na Assembleia Legislativa o Projeto de Lei (PL) 469, para alterar o Sistema Estadual Unificado de Apoio e Fomento às Atividades Culturais, o Pró-Cultura. (Desde 2010, este é o nome oficial do sistema que reuniu, por meio da Lei 13.490, os mecanismos de fomento direto – Fundo de Apoio à Cultura, ou FAC; e indireto – renúncia fiscal, ainda hoje conhecido como “LIC”, sigla da primeira Lei de Incentivo à Cultura do RS, criada em 1996.) As modificações limitam-se a retirar do Conselho Estadual de Cultura três atribuições: 1) definir os critérios de avaliação dos projetos incentivados; 2) avaliar os projetos incentivados; e 3) designar um terço dos membros das comissões julgadoras dos editais do FAC. 

Sem ter sido sequer informado pelo Governo, o Conselho, ao tomar conhecimento do PL 469, solicitou a retirada da urgência, a fim de propiciar o debate democrático – afinal, em pouco mais de dois meses teremos uma Conferência Estadual de Cultura. Não houve resposta. É possível, portanto, que no momento em que o leitor estiver lendo essas linhas, elas tenham se tornado inúteis diante do fato consumado. Assumo o risco de seguir adiante. 

Na justificativa do PL 469, o Governador alega que, ao delegar a avaliação dos projetos para comissões de “técnicos especialistas”, visa a “uma análise puramente técnica”. Embora discutível a possibilidade de “pureza técnica” no âmbito de políticas públicas, há consenso no próprio Conselho sobre a necessidade de contratação de pareceristas externos. Ao reduzir o volume de trabalho dos conselheiros, a medida lhes permitiria desempenhar outras funções essenciais como fiscalizar as ações do Estado. A diretoria anterior do Conselho (da qual fiz parte) levou a ideia à Secretária de Estado da Cultura, sugerindo ampliar de um para três o número de relatores de cada projeto, o que é de praxe em editais e traria “maior isonomia” ao processo (também citada na justificativa). Mas nossa sugestão não prosperou. 

Sendo o PL 469 omisso quanto à forma de seleção dos “técnicos especialistas”, em tese poderão participar servidores de carreira, ocupantes de cargos em comissão ou voluntários… quem sabe até conselheiros? A Sedac é quem dirá, sem participação do Conselho.

Sobre os critérios de avaliação dos projetos, a única justificativa (?) apresentada pelo Executivo no PL 469 para transferir esta atribuição para a Sedac é que isso “já ocorre no FAC”. 

Por fim, a justificativa do PL não apresenta nenhuma razão para retirar do Conselho a atribuição de indicar um terço dos membros das comissões julgadoras do FAC. (Outro terço é atualmente indicado pelo Conselho de Dirigentes Municipais de Cultura, o Codic, que também será excluído do Sistema). 

É evidente que a decisão de enviar esse projeto nada teve de “puramente técnica”. Ao que tudo indica, seu objetivo é dar uma satisfação aos produtores e políticos contrariados por não verem aprovados projetos tradicionais da Capital (como a Feira do Livro, os Festejos Farroupilhas e o Porto Alegre em Cena), além do Festival de Cinema de Gramado.

Sem entrar aqui em detalhes do atual processo de avaliação pelo Conselho, nem nas condições adversas em que o faz, vou direto aos dois fatores principais que levaram a essa situação. O primeiro foi o aumento da concorrência. No ano de 2022 atingiu-se o número inédito de 1.145 projetos inscritos (total de R$ 330 milhões), enquanto os recursos só permitiram patrocinar 262. Demanda muito superior à de 2019, antes da pandemia, com apenas 397 projetos protocolados. Embora o valor disponível para incentivo tenha aumentado no primeiro mandato de Leite, não foi suficiente. Prova disso está na própria justificativa do PL 469, onde se lê que no ano da criação do incentivo à cultura no Estado o Governo autorizava um total de R$ 28 milhões, e para o corrente ano esse limite “subiu” para R$ 70 milhões. Ocorre que os R$ 28 milhões de 1996 em valores de hoje seriam mais de R$ 230 milhões! [1]

O segundo motivo que deixou de fora, por alguns meses, projetos contemplados religiosamente ano após ano está na própria Lei, que determina como uma das diretrizes do Pró-Cultura a “distribuição dos recursos a projetos culturais das várias regiões do Estado[2]. Levantamento realizado em março deste ano pelo Conselho revelou que 313 dos 497 municípios (63%) não haviam recebido projetos incentivados nos 12 meses anteriores. No mesmo período, Porto Alegre, onde residem 12,2% dos gaúchos, recebeu 23,4% do total distribuído, com 60 projetos aprovados (cinco por mês, em média). Somente os 11 municípios mais agraciados concentraram mais da metade do valor total, que foi de R$ 66,3 milhões [3]. No cumprimento da Lei, portanto, e com base nesses dados, o Conselho aplicou critério de desempate que após quatro rodadas mensais sucessivas reduziu a participação da Capital para (ainda consideráveis) 16,8% — correspondente a R$ 10,8 milhões distribuídos a 37 projetos, média de três projetos por mês. Já na quinta e última rodada do ano, Porto Alegre voltou a ter quatro projetos contemplados, recebendo R$ 1,77 milhão.

Como o PL 469 não mexe nesse princípio básico da Lei (talvez encontrasse resistência no Legislativo), resta saber como os futuros avaliadores poderão contorná-lo, de forma “técnica”. Uma hipótese é a Sedac simplesmente ignorá-lo ao reformular os critérios de avaliação. Há precedente, por exemplo, no recente edital 3/2023 do Fundo de Apoio à Cultura, que não levou em consideração a diretriz específica que destina este fundo para o “apoio a novas iniciativas culturais”; bem como a determinação de priorizar os pontos e pontões de cultura [4].

A aplicação objetiva desse critério permitiu contemplar, no primeiro semestre deste ano, projetos em municípios como Cruz Alta, Rosário do Sul, Jaguarão, Taquari, Fagundes Varela, Sobradinho, São Valentim do Sul, Itaara, Candiota, Progresso e Harmonia. (E cito aqui, entre 156 projetos aprovados em 2023, apenas os municípios que registravam 0% de participação nos 12 meses anteriores.) Em consequência, em Porto Alegre e outros municípios tradicionalmente aquinhoados surgiram manifestações de descontentamento, cuja repercussão política e midiática contrasta fortemente com o silêncio sobre a relevância de cada um dos projetos aprovados [5]. Os críticos alegam que os benefícios dos “grandes eventos” vão muito além das fronteiras de seus municípios e do próprio Estado, promovendo o turismo, atraindo visitantes e movimentando a economia. Pode-se, contudo, objetar que devido ao seu histórico e visibilidade, teriam mais facilidade de se manterem de forma sustentável, reduzindo sua dependência do Estado. Provocado, o Parlamento promoveu audiências públicas, cumprindo exemplarmente seu papel de escuta respeitosa da sociedade e busca de consensos [6].

Sendo em todo o caso sagrado o direito de cada um defender seu projeto contra um julgamento que considera injusto, é contudo chocante a ausência, nessas manifestações, do mínimo interesse em tomar conhecimento dos outros projetos, aqueles 156 que ousaram exercer o direito de serem aprovados, ignorados pela mídia, por políticos e até por artistas e intelectuais, o que talvez se explique por arraigados preconceitos da Capital contra o interior. E que fique claro, projetos culturais são documentos concretos, cujo sucesso depende da capacidade de convencer o leitor sobre a importância (e o baixo risco) de nele se investirem recursos de nossos impostos. Não há concursos para julgar “a essência”, “a tradição” ou “a relevância” em abstrato, como dão a entender certas críticas.

Também notável é a ausência no debate de qualquer questionamento sobre o modelo de gestão que transferiu para a renúncia fiscal projetos que há duas décadas eram realizados pelo poder público com recursos do orçamento. É o caso do Porto Alegre em Cena, que nunca teria nascido (há 30 anos) sem os recursos nele investidos pela Prefeitura de Porto Alegre. Também a Feira do Livro e o Acampamento Farroupilha da Capital, vinte anos atrás, recebiam parte significativa de seus recursos dos cofres municipais, nos valores de R$ 155 mil e R$ 128 mil, respectivamente (em valores de hoje seriam R$ 590 mil e R$ 487 mil) [7]. Embora o prefeito Sebastião Melo tenha anunciado uma generosa “ampliação” dos recursos do município para esses dois eventos, ao criticar sua não aprovação pelo Conselho, a Lei Orçamentária Anual de 2023 não reservou nenhum centavo para ambos [8]. É pena que até mesmo pessoas que participaram, em cargos públicos de relevo, daquele contexto em que discursos pela valorização da cultura eram amparados por orçamentos públicos condizentes, parecem tê-lo esquecido, ou se conformado com o “novo normal”.

Voltando ao PL 469, através do qual o Governador pretende em suma reduzir a participação social no Pró-Cultura, hoje exercida por um Conselho composto por dois terços de representantes eleitos por entidades culturais de todas as regiões do Estado, resta saber se essa medida autoritária passará batido ou despertará vozes contrárias na mídia hegemônica, na Academia, no Parlamento… Enquanto isso, entre artistas e produtores fazem-se ouvir as vozes de alguns que, por não terem seu projeto aprovado, sentem-se agora (ingenuamente) “vingados”… pelo Governo. Impossível não pensar no fenômeno do bolsonarismo, que cresceu com o apoio dos cidadãos que, não se vendo contemplados pelos processos democráticos, não encontram problema em mandar a democracia às favas, se no final lhe sobrar algum. Há motivos para crer que no campo da cultura seja diferente?

Quanto ao Conselho Estadual de Cultura, cabe refletir se sua atribuição constitucional de “estabelecer diretrizes e prioridades para o desenvolvimento cultural do Estado” não ficará seriamente comprometida, se a sua participação no único sistema estadual de financiamento à cultura for reduzida a zero.

Notas

[1] Correção pelo IGP-M, no site do Banco Central

[2] Art. 1º. parágrafo 1º. da Lei 13.490/2010. Outra diretriz determina “a transparência, através da divulgação à sociedade, por intermédio de sítio próprio na Rede Mundial de Computadores, com atualização bimestral, de todas as informações referentes à utilização dos recursos financeiros e sua efetiva aplicação na realização de atividades culturais”, no que o Governo deixa a desejar. 

[3] Além da capital, Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Gramado, Ijuí, Lajeado, Erechim, Nova Prata, Viamão, Pelotas e Palmeira das Missões.

[4] Conforme a Lei 13.490/2010, Art. 12, § único; e a Lei 14.663/2014, Art. 24.

[5] Como, por exemplo: “Aumento da demanda provoca disputa por recursos públicos para o setor cultural na Serra” (GZH) e “Conselho de Cultura nega recursos a Acampamento Farroupilha de Porto Alegre” (G1), entre outros.

[6] Gravações em vídeo das audiências disponíveis no site do Poder Legislativo do RS neste endereço e neste endereço.

[7] Dados publicados pelo Tribunal de Contas do Estado. A correção é a mesma dos valores citados anteriormente. 

[8] A LOA 2023 pode ser consultada aqui

(*) Poeta e músico, titular do Conselho Estadual de Cultura. Especialista em Gestão e Política Cultural (Univ. de Girona- Itaú Cultural), Bacharel em Música e Mestre em Letras (UFRGS).

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora