Opinião
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9 de outubro de 2023
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07:09

Quebraram os antigos termômetros da economia brasileira? (por Flavio Fligenspan)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Flavio Fligenspan (*)

A área de trabalho em Economia é vasta, abarcando várias esferas das atividades pública e privada. Muitos economistas trabalham em atividades que dependem fortemente da previsão do futuro, em especial os que operam no mercado financeiro. Assim, a construção de modelos matemáticos que se proponham a “adivinhar” o futuro representa um ponto de apoio decisivo para seu sucesso. Como construir bons modelos que consigam prever o que ninguém sabe? Em geral, buscam-se bases de dados bem amplas sobre o desempenho passado de variáveis consideradas as mais importantes para tal objetivo. De alguma forma, nesta resposta está implícita a ideia de que o futuro deve se construir a partir do passado, com poucas ou muitas variações.

Que variáveis devem ser consideradas? Quanto se deve retroceder nas séries históricas? Qual o peso do passado e quanto se deve considerar que o futuro será diferente do que já ocorreu? Muito diferente ou pouco diferente? As respostas a estas difíceis perguntas vão definir a qualidade dos modelos e seus resultados econômicos. Pequenas variações na formulação dos modelos determinam ações diferentes e, possivelmente, grandes mudanças nos resultados.

Eventos endógenos ao funcionamento das economias mudam as relações econômicas e, naturalmente, alteram os modelos. Por exemplo, a quebra do Banco Lehman Brothers, nos Estados Unidos em 2008, marcou o início de uma grande crise financeira internacional que mudou vários parâmetros. A partir deste acontecimento, o passado deixou de ser uma fonte fidedigna para projetar o futuro. Por outro lado, eventos exógenos ao funcionamento das economias também alteram os modelos. A pandemia de 2020 é o maior exemplo recente, pois mudou profundamente as relações comerciais internacionais e a organização das cadeias produtivas mundo afora, além de exigir grandes intervenções públicas. Não há dúvida de que a economia mudou em todo o mundo, e os modelos e parâmetros anteriores à pandemia não podem mais ser aplicados livremente.

Em função das alterações trazidas pela pandemia e as reações dos governos com suas políticas fiscais e monetárias, atualmente discute-se em vários países se ocorreu ou não um aumento do PIB potencial. Tal variável não é observável na realidade, diferentemente do PIB, que é medido pelos institutos de pesquisa. O fato de não ser observável não lhe retira a importância, pois a estimativa do PIB potencial indica um nível de atividade que não pressiona os fatores de produção, isto é, se a taxa de crescimento do PIB real não for maior do que o potencial, se acredita que os mercados em geral não estejam pressionados a ponto de se elevarem os preços e isto causar um processo inflacionário. A taxa de crescimento do PIB potencial seria, portanto, uma espécie de “nível seguro” de expansão do produto.

O debate de conjuntura no Brasil também está fazendo a discussão sobre o possível aumento do PIB potencial, isto porque a economia tem crescido acima do que se esperava sem causar pressões inflacionárias. Pelo contrário, a inflação tem caído, o que apoia a hipótese do aumento do PIB potencial. O mesmo movimento se dá em outros países, como nos Estados Unidos. Discuti exatamente este tema na Coluna anterior aqui neste espaço (Foi a alta dos juros que derrubou a inflação?), argumentando que o que derrubou a inflação foi o final do período de pressões de oferta que se verificou desde a pandemia, agravado pelo conflito na Ucrânia. No momento em que as pressões de custos cessaram, a inflação cedeu. O fato é que se o PIB potencial realmente aumentou, é possível produzir mais sem causar tensões.

A taxa de desemprego no Brasil também tem surpreendido, com repetidas divulgações abaixo do esperado. Neste caso, há um fenômeno claramente detectado a explicar a queda da taxa; ocorre que muitas pessoas que se retiraram do mercado de trabalho no auge da pandemia, no período de isolamento, não voltaram quando as medidas de distanciamento foram relaxadas com a vacinação. Assim, menos trabalhadores pressionam o mercado em busca de vagas. Há quem argumente que as reformas trabalhista e da previdência mudaram definitivamente o mercado de trabalho, reduzindo a taxa de desemprego natural, aquela que não causa pressões no mercado. Ao mudar as regras para aposentadoria, desregular o mercado de trabalho, enfraquecer os sindicatos e diminuir o acesso à Justiça do Trabalho, as relações entre empregados e empregadores mudaram para sempre, alterando a taxa de desemprego.

Outra variável importante da economia brasileira que teria sofrido uma modificação permanente nos últimos anos é a taxa de juros neutra. Por definição, esta é a taxa que está associada a um nível de atividade que não pressiona a economia, logo não eleva os preços, e, simultaneamente, consegue explorar todo potencial produtivo da economia. Estima-se que a taxa neutra teria aumentado nos últimos anos, porque, do contrário, a taxa de juros efetiva, tão mais alta que a taxa neutra, teria deprimido o PIB. Mas o que tem se verificado é um crescimento do PIB além do esperado, e sequer acompanhado de uma disparada da inflação, que até está em rota de queda. Ou seja, a taxa neutra – mais alta do que se pensava – teria aumentado e estaria mais próxima da taxa efetiva. Dito de outra forma, a taxa efetiva praticada pelo mercado não estaria tão acima da taxa neutra a ponto de sacrificar o PIB.

Enfim, muitos fatos novos relevantes aconteceram de dez anos para cá na economia brasileira, desde as Jornadas de 2013; a recessão de 2015-2016; o impeachment de Dilma; as já citadas reformas trabalhista e da previdência; a pandemia; a chamada “agenda do Banco Central”, que mexeu com o sistema de pagamentos e com o mercado de crédito; e o avanço das privatizações. É bem razoável que tantas mudanças em tão pouco tempo tenham alterado os modelos econômicos do passado e que seus parâmetros não valham mais. O passado explicaria cada vez menos o presente e seria uma referência mais frágil para projetar o futuro. Ainda há que se acumularem mais observações das variáveis nos próximos períodos e há muito o que se estudar para se confirmarem tais mudanças, mas começa a fazer sentido a hipótese de que “quebraram o velho termômetro” da economia brasileira.

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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