Opinião
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24 de outubro de 2023
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09:59

Parabéns, Redenção! (por Ana Maria Dalla Zen)

Ato
Ato "Abraço em Defesa da Redenção Pública". ( Foto: Joana Berwanger/Sul21)

Ana Maria Dalla Zen (*)

Há alguns dias, foi comemorado o aniversário do Parque Farroupilha, criado em 19 de setembro de 1935 para sediar uma exposição internacional em homenagem ao centenário da epopeia farroupilha. Todavia, em que pese seu nome oficial, a sociedade insiste em chamá-lo de Redenção, um apelido carinhoso que possui um valor simbólico muito maior e que abarca uma história também mais longa deste espaço público, ultrapassando os meros 87 anos oficiais. Hoje, 24 de outubro de 2023, comemoramos exatos 216 anos que Paulo José da Silva Gama, presidente da recém-criada Capitania de São Pedro, doou uma área plana, descampada e alagadiça, então localizada fora dos limites da cidade, denominada Campo da Várzea, para que ali acampassem carreteiros para descanso do gado. Ninguém imaginaria, naquela ocasião, que ele viria a fazer parte da cidade e, mais do que isso, se tornaria o seu coração verde. E que, no decorrer da história, viesse a se tornar no cenário de movimentos em defesa de todas as práticas de liberdade, num processo que se iniciou com o movimento abolicionista, em que a sociedade lutou em defesa dos negros e negras, vergonhosamente escravizados, em busca da redenção de suas vidas. Posteriormente, com a expansão da urbanização, os terrenos próximos foram sendo ocupados por chácaras, de onde nasceu o bairro chamado Bom Fim. Em decorrência da capela, cuja construção se iniciou em 1867, o Campo da Várzea passou a se chamar Campo do Bom Fim. E, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea (13 de maio de 1888), em 9 de setembro de 1884, a Câmara mudou o seu nome para Campos da Redenção. Oficialmente, só se tornou parque em 1935, como foi acima descrito, embora seu ajardinamento tenha iniciado ainda na década de 1920, quando recebeu canteiros, bancos, árvores e o roseiral na face da Avenida João Pessoa.

O espaço diante da capelinha passou a receber tanto festas católicas quanto de matriz africana, como batuques ao ar livre, que atraíam moradores da cidade [1], e que até hoje persistem. Desde o início do século XIX se constituiu num território negro, como destaca Vieira [2], em que os negros realizavam suas práticas culturais, como a capoeira, o batuque e o quicumbi, e negros passaram a residir nos arredores, com o surgimento de figuras populares, como uma parteira conhecida como a Baiana do Presépio, o Candombe da Mãe Rita e o batuque dos Campos do Bom Fim.

Avenida central do parque, década de 1930, autor desconhecido.
RG 3229, acervo do Museu da UFRGS

Trata-se de um ponto de memória da cidade, reconhecido por seu caráter democrático e inclusivo, num ambiente pleno de liberdade, diversidade e convivência. Longe de qualquer caráter utópico, a Redenção se tornou sinônimo de práticas de cidadania, sempre em posição de defesa contra qualquer tipo de discriminação, intolerância, hostilidade, perseguição, exclusão ou violência, seja ela em relação a qualquer forma de vida no planeta, referente ao homem e à natureza. Dentre inúmeras outras ações, foi palco do Fórum Social Mundial, da luta pelas Diretas Já, das paradas LGBTQIA+, da pressão pelo Fora Bolsonaro, e hoje se transformou na sede da luta contra o arboricídio e a gentrificação que ameaçam o nosso  Porto hoje nem tão Alegre. Não se pode dizer que o projeto da gestão atual da prefeitura, lançado em 2022, de sua concessão à iniciativa privada, tenha sido original, uma vez que, já que em 1824, a Câmara municipal tentou lotear a área em busca de recursos, o que foi negado pelo imperador Pedro I em 1826. Logo em seguida, em 1833, novamente a Câmara tentou vender a área, o que não se efetivou, porque foi impedido por um abaixo-assinado reunido à época pela população. Nesse sentido, o Coletivo Preserva Redenção, criado em nove de outubro de 2022 para impedir que se consumasse a concessão para a iniciativa privada,  ou privatização, é mais uma batalha que mantém viva a  luta da população de Porto Alegre pela redenção de seu parque mais querido. Reunindo uma lista com mais de 40.000 assinaturas e tendo interposto uma série de medidas judiciais, se não provocou a retirada do projeto pela administração municipal, pelo menos contribuiu para que fosse adiado. Em consequência, a data de 22 de outubro corrente foi convenientemente comemorada em plena Redenção, enquanto um presente dado pelo Movimento para celebrar os seus 216 anos.  Parabéns, Redenção!

Notas

[1] PORTO ALEGRE, Achylles. História popular de Porto Alegre. Porto Alegre, PMPA – EU, 1994.

[2] VIEIRA, Daniele Machado. Territórios negros em Porto Alegre/RS (1800-1970) Geografia história da presença negra no espaço urbano. Belo Horizonte: ANPU – Associação Nacional de Pós-graduação e pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, 2021.

(*) Professora titular aposentada da UFRGS, docente colaboradora do Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimômio/FABICO/UFRGS. Membro do Coletivo Preserva Redenção, militante em  defesa do verde e do bem viver na cidade de Porto Alegre. Email [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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