Opinião
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27 de outubro de 2023
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09:35

Do falso prêmio Nobel de economia e do verdadeiro prêmio do ministro Haddad (por Marcelo Milan)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Marcelo Milan (*)

Outubro sempre deixa muitos praticantes da área da economia alvoroçados. Não devido à associação de graves crises do capitalismo com este mês, como o pânico bancário de 1907 e as quebras da bolsa de NY em 1929 e novamente em 1987, já que esse tipo de evento não existe nos modelos econômicos autistas da ortodoxia econômica. Ou mesmo à revolução bolchevique de outubro de 1917 em Petrogrado. A razão é que em outubro também é divulgado um prêmio considerado importante por muitos profissionais (sic) desta área. Chamam de prêmio Nobel de economia. Na verdade, é o prêmio do Banco Central da Suécia em memória de Alfred Nobel. Portanto, de Nobel mesmo só tem a referência à pessoa. Diferente dos prêmios legítimos, o de economia foi criado em 1968 em função do 300º aniversário do Banco Central da Suécia. O que essa data tem a ver com Alfred Nobel? Nada.

O prêmio de economia, portanto, não estava definido no testamento de Alfred Nobel, redigido em 1895. Os primeiros cinco prêmios legítimos foram entregues em 1901, quase sete décadas antes do prêmio falso. O Banco Central Sueco tentou chamar a sua premiação de prêmio Nobel de economia, mas os descendentes de Alfred proibiram, pois ele (compreensivelmente) não gostava da economia. E a sua vontade estava expressa e documentada em testamento. Nada de prêmio para a economia. Como não se pode evitar que homenagens sejam feitas à memória de quem quer que seja (na Bananilga há uma predileção por homenagear torturadores e milicianos), o Banco Central Sueco criou um prêmio em memória de Alfred, para poder utilizar o sobrenome e tentar passar a ideia de que se tratava do mesmo prêmio. A entrega dos prêmios legítimos e do prêmio falso na mesma cerimônia contribui ainda mais para a confusão e a farsa.

É interessante notar que a real academia de ciências da Suécia não mais permitiu que outras homenagens fossem feitas, evitando assim que outras áreas de estudos também pudessem ter seu falso Nobel. A antropologia, para ficar em um único exemplo, tem mais contribuições para o conhecimento humano do que a economia. Os economistas, em sua insuperável inveja da física, associam o prêmio à ciência, mas se esquecem que a literatura, detentora de prêmio legítimo, não é ciência (nem deve ser). Há também um prêmio Nobel (legítimo) da paz (o fato de Barack Obama ter sido laureado já diz muito sobre a real academia sueca de ‘ciências’). Ambas, literatura e paz, contribuem muito mais para a humanidade que a economia, que não é ciência. E existem muitas áreas importantes que não são contempladas pelo prêmio, e há tantos outros prêmios importantes para o conhecimento humano além do Nobel. E mesmo sendo falso, muitos agraciados, quando saem dos confins da ortodoxia irrelevante, proporcionam ideias interessantes e instigantes. Assim como tantos outros que não foram e nunca serão premiados. Na verdade, os pesquisadores e pesquisadoras mais interessantes não podem ser laureadas justamente por isso. Nem toda água do banho deve ser jogada fora com o monstrinho que se passa por bebê.

Como mais um entre tantos exemplos que economia não é ciência, há vários contrassensos na curta história da premiação do Banco Central Sueco. Por exemplo, em 1974 o falso Nobel foi outorgado para um socialista (mas provavelmente por ser Sueco) que, de fato, foi um dois mais importantes pensadores do século XX. E ao mesmo tempo para um defensor da liberdade dos capitalistas ricos e poderosos. Em 1995 laurearam um maluco que afirmou, em 2003, que não haveria mais crises profundas na economia. Em 1997 o Banco deu o prêmio para pessoas que desenvolveram uma fórmula para calcular o preço de instrumentos financeiros conhecidos como opções. Pois os laureados viraram executivos de um fundo hedge (fundos para a especulação das pessoas muito ricas, inclusive com opções) e o levaram à falência no ano seguinte. Em 2013 o prêmio foi para um sujeito que afirma que não existem bolhas especulativas nos preços dos ativos financeiros. E ao mesmo tempo para um outro sujeito que defende que elas existem. Em 2022 a premiação foi para um economista que dizia, no auge da bolha no preço dos imóveis que levou à crise das hipotecas subprime em 2007-2008, que não havia nada de errado com o preço dos imóveis. Esta crise aconteceu apenas cinco anos após o maluco premiado em 1995 dizer que um fenômeno como aquele era impossível.

Imaginem se isso acontecesse na física, objeto da inveja mortal dos economistas. Um físico defendendo que não existe uma lei da gravidade porque não se pode vê-la, e uma outra física argumentando que a lei existe, e sugerindo para o primeiro flutuar após se atirar do 2º andar. O doidivanas pula, se estatela, e, sem os dentes, sorri e afirma que se desequilibrou (até aqui a física seria mais rica que a economia, fixada na patologia do equilíbrio). Isso não quer dizer, por óbvio, que não existam controvérsias nas ciências de verdade, como sugere a polêmica teoria das cordas na física. Da mesma forma, se a medicina fosse como a economia, teria economistas defendendo a hidroxicloroquina como comprovadamente efetiva no combate à COVID até hoje. E, claro, gente dizendo a verdade (hidroxicloroquina é picaretagem de aloprado). Ambos recebendo o prêmio falso.

O falso Nobel de 2023 foi para uma mulher, Claudia Goldin. Apenas três mulheres conseguiram a láurea. Esther Duflo em 2019 e a excepcional Elinor Ostrom em 2009 (levou quatro décadas para o trabalho das mulheres em economia ser reconhecido pela ortodoxia…). Ostrom é fantástica, até por não ser economista. Goldin, em seu feminismo liberal que faz os reacionários espumarem, também tem trabalhos interessantes e está bem acima da média (que é muito baixa na profissão…). Por exemplo, identificou a existência de barreiras matrimoniais à atuação das professoras em nível pré-universitário no início do século XX em diversos locais nos EUA. Se uma professora se casasse ou engravidasse, teria de pedir demissão. Em outro estudo, descobriu a existência de discriminação por gênero. A introdução de audições cegas ao gênero (e à raça) para ingresso nas orquestras sinfônicas fez a contratação de mulheres aumentar fortemente. Mostrou também como as pílulas anticoncepcionais modificaram de forma positiva as decisões de emprego das mulheres. A pesquisa de Goldin também lança luz aos enormes custos, em termos de carreira, para as mulheres que assumem responsabilidades com os cuidados familiares. 

Mas para conquistar o falso Nobel, sendo economista, é preciso pagar o pedágio da irrelevância ortodoxa. Goldin rejeita a discriminação de gênero para a desigualdade salarial, pois as mulheres avançaram neste aspecto (e a Lei 14.611/2023 seria desnecessária). Lentamente mas avançaram. Assim, a discriminação não seria uma fonte de desigualdade salarial entre homens e mulheres, pois as empresas maximizam seus lucros ao pagarem menos para as mulheres. Goldin considera que as mulheres brancas e com nível superior fazem escolhas de forma racional sobre quantas horas trabalhar. Os homens ganham mais por trabalharem em ‘empregos cobiçosos’ (greedy work) (não cobiçados…) e terem jornadas mais longas. As decisões são tomadas pelo casal para maximizar a renda domiciliar. Assim, as mulheres decidem ganhar menos para dedicar mais tempo aos cuidados familiares, com a tecnologia economizando tempo (micro-ondas, aspirador, lava-roupa)… Como não poderia deixar de ser, é melhor uma maior eficiência que aumente os lucros dos capitalistas do que menos desigualdade salarial. Contudo, Goldin ignora que os cuidados não podem ser interrompidos. E no horário comercial das mulheres brancas de alta renda existem mulheres não brancas e sem nível superior, isto é, sem as mesmas opções, que assumem estes cuidados. Sua explicação, assim, não se aplica às palestinas deslocadas pelo nazisionismo ou mesmo a mulheres negras e da classe trabalhadora. Não parece ser plausível assumir que as palestinas expulsas de suas terras e casas decidam quantas horas querem trabalhar como empregadas domésticas nos países em que se refugiam involuntariamente.

Isso reforça mais uma vez que a economia não é ciência, mas mera racionalização de relações de poder, isto é, racionalização de problemas políticos resolvidos (quem ganha e quem perde). Aqui como em outras situações, as previsões econômicas são inúteis. E cabe notar que não é só na Bananilga. No final de 2021, o relatório de política monetária do Banco da Inglaterra previa uma inflação de 3,4% no Reino Unido em 2022. A inflação real foi de 9,2%. Para a zona do Euro, o Banco Central Europeu previa, também ao final de 2021, uma inflação de 3,2% no ano seguinte. A inflação real ficou acima de 9%…Essa incapacidade crônica de prever não tem nada a ver com dados ou modelos. Tem a ver com incapacidade ontológica de previsão. Os dados produzidos pelo IBGE são os melhores que se pode ter. Os modelos ortodoxos são inúteis, mas o problema não é esse.

A ignorância dos economistas é alarmante. A literatura sobre erros de previsão é vasta. Já em 1928 Oskar Morgenstern publicou a obra Wirtschaftprognose: Eine Untersuchung Ihrer Voraussetsungen Und Moeglichkeiten, argumentando sobre a impossibilidade de previsões econômicas válidas. Em 1937 ele publicou o livro Limites da Economia, reforçando o argumento. A incerteza fundamental enfatizada por Keynes aponta no mesmo sentido. Lester Thurrow, um economista falecido que ensinava no Massachusetts Institute of Technology, argumentava que o modelo de oferta e demanda é uma espécie de terraplanismo. As evidências de que não conseguem prever acuradamente, todavia, nunca impediram os economistas de seguirem vendendo leite de cobra. E mesmo que seus modelos sejam inservíveis para exercícios de adivinhação, seguem vituperando bobagens. Por exemplo, que existe um produto potencial, alcançado pela mágica da plena flexibilidade de preços em um horizonte indefinidamente longo. Quando todos os preços e salários se ajustam…voilà! O PIB de verdade se transforma em produto potencial! 

E neste estado nirvânico a única coisa que varia é a taxa de inflação. O produto potencial da teoria ortodoxa é compatível com infinitas taxas de inflação, que dependem única e exclusivamente da demanda. Para que a inflação seja baixa (e este nível é fixado pelos parasitas do sistema financeiro e refletido na meta de inflação perseguida pelo Banco Central), é preciso encontrar outra coincidência: uma chamada taxa neutra de juros deve coincidir com a taxa de juros praticada no sistema monetário. A primeira é um termo supostamente anódino que substituiu a antiga taxa natural de juros, correspondente a uma taxa natural de desemprego que corresponde ao produto potencial. Bingo! Tudo se encaixa no mundinho encantado da ortodoxia em que a inflação é sempre de demanda e regulada exclusivamente pela taxa de juros! Uma taxa neutra, sem qualquer relação com interesses rentistas, representa uma política monetária sem política. Alguma coisa monetária. Muda o termo, a irrelevância permanece. 

Ou seja, economia não é ciência. Nunca foi, nunca será. Não existe um prêmio Nobel de economia. Existem interesses que se refletem em teorias. E os prêmios legitimam os mesmos interesses. O Ministro da Fazenda foi premiado pela banca. O Latin Finance parece o prêmio ‘Faz a Diferença’, criado para cooptar magistrados para o projeto do atraso e do arcaísmo. O prêmio do Ministro foi um reconhecimento pelos serviços prestados à Faria Lima por meio das ordens do Banco Central, o calabouço fiscal e o projeto déficit zero. O Ministro certamente vai virar consultor de banco ou instituição financeira depois de largar a Fazenda. Como dizem os populares do funk, ‘tá dominado…tá tudo dominado’. 

(*) Bacharel, mestre e doutor em economia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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