Opinião
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5 de outubro de 2023
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17:09

A Constituição de 1988 e a democracia brasileira (por Céli Pinto)

Na foto, o presidente da assembleia, deputado Ulysses Guimarães, no dia da promulgação do texto - Arquivo/Agência Brasil
Na foto, o presidente da assembleia, deputado Ulysses Guimarães, no dia da promulgação do texto - Arquivo/Agência Brasil

Céli Pinto (*)

A constituição e a democracia brasileira têm dois pontos de partida fundantes: a constituinte e o próprio texto constitucional. 

Durante a Assembleia Nacional Constituinte, houve uma expressiva mobilização da sociedade civil, através de suas entidades, no sentido de enviar emendas populares que, segundo o regimento da constituinte, deveriam conter no mínimo 30 mil assinaturas. Foram enviadas 122 emendas, somando ao todo 12 265 856 assinaturas. Eu própria analisei as emendas que trataram dos direitos das mulheres. Uma delas, a de n. 20, foi apresentada por diversos grupos feministas, fruto de dois anos de reuniões e de um projeto coletivo chamado “Nós e a Constituinte”. O Conselho Nacional das Mulheres, à época, também produziu o documento ‘Propostas à Assembleia Constituinte” que estabelecia a necessidade de garantir direitos fundamentais às mulheres, os quais foram contemplados na Constituição de 1988 como fruto da abertura para um processo mais inclusivo e democrático de participação.

O segundo ponto é a própria constituição, que traz, no seu texto original, conquistas democráticas importantes e um potencial admirável para aprofundar o regime com mais igualdade e maior liberdade, potencializando ferramentas para promover o bem viver da população em geral.

Nestes 35 anos, a Constituição foi um importante apoio para a frágil e nova democracia brasileira. Impossível esquecer que é a mais longeva das Constituições republicanas no país. A pergunta que se impõe é:  qual o papel da constituição frente às crises que vivenciamos, não só para assegurar esta frágil democracia, mas também para alavancar um regime mais robusto, estável e socialmente justo? Não há resposta milagrosa para esta questão. Levantarei apenas algumas questões da atual problemática do regime democrático brasileiro, indicando potencialidades da Constituição para minimizar as ameaças à democracia no país e para pensar em seu aprimoramento.

De forma bastante ingênua e utópica, uma resposta à questão acima poderia supor que,  se todos os brasileiros e brasileiras, a despeito de seu poder político e econômico, e  todos governantes de ocasião, cumprissem fielmente  pelo menos o Titulo II da Constituição “Das Garantias e dos direitos fundamentais”, já teríamos um país  muito diferente do que temos hoje, com certeza, mais justo, mais livre e muito mais democrático.

Para pensar nas dificuldades de uma constituição democrática ser cumprida no Brasil, é necessário  considerar dois fatores: a novidade da democracia no país e a crise da democracia no mundo ocidental nas últimas décadas, o que,  evidentemente, também nos atinge.

A democracia como valor é uma novidade na história brasileira, tem mais ou menos 50 anos. Tomando todo o espectro político-ideológico do Brasil, a democracia nunca foi um grande valor antes da luta contra a ditadura instaurada pelo golpe militar de 1964. A direita, que, muitas vezes, se auto denomina liberal, desde 1950 até meses atrás, bateu diversas vezes nas portas dos quarteis em busca de apoio para um golpe de estado para chamar de seu. Algumas vezes foi bem-sucedida, outras não. Já a esquerda via a democracia como um regime burguês a ser ultrapassado, até que sentiu, nos seus corpos torturados, o que era viver sob uma ditadura. Daí que, na chamada luta pela redemocratização no Brasil, pela primeira vez a democracia, para esquerda e para o centro da política brasileira, se tornou fundamental. 

O segundo aspecto é o da crise da democracia, concretizada em uma virada conservadora, de feição muitas vezes neofascista.

Brown(2019) e Dardot  &Laval (2016), apesar de partirem de questões diversas, concordam que o atual neoliberalismo,  diferentemente do que dominou os anos de 70/80,  possui uma característica distinta e definidora:  extrapola a economia e se constitui em uma forma de governança, que envolve  a sociedade, as relações de trabalho, as formas de educação de crianças e jovens, os princípios éticos, a moral individual dos sujeitos e a própria existência da política.

Tudo isto afeta radicalmente a relação do capitalismo com a democracia e teve antecedentes que anunciavam a nova era.  Dardot & Laval (2016) chamam a atenção para o fato que, já em 1975, durante uma reunião da Comissão Trilateral fundada por David Rockefeller, especialistas “constataram que os governantes eram incapazes de governar em razão do excessivo envolvimento dos governados na vida política e social”( Dardot , Laval, 2016, p.194). No relatório final da reunião, os redatores falaram de um excesso de democracia.

O neoliberalismo, portanto, já tem uma história de décadas. Foi capaz de se transformar e reverter conquistas no campo social e político que, em certos momentos, pareciam ser ganhos civilizatórios de longa duração. Se, por um lado, teve sucesso em desmantelar o estado de bem-estar social na Europa e criar um fosso entre ricos e pobres nos Estados Unidos, por outro, viu crescer dois movimentos com sinais contrários: pela primeira vez, após a Segunda Guerra Mundial, a extrema-direita, com feições totalitárias e racistas, apareceu publicamente na Europa, com pequenos partidos que, no século XXI, se tornam copartícipes dos processos eleitorais, conquistam cadeiras nos parlamentos e amealham 40% do eleitorado em alguns países (como aconteceu na França, no Segundo Turno das eleições presidenciais de 2022). Na contramão dos movimentos de direita e extrema-direita, surgem, ao redor do mundo, movimentos que enfrentam as estruturas de poder e, sem se oporem ao capitalismo na forma tradicional da chamada luta de classes, ameaçam a pacto tradicional que o neoliberalismo trata de reafirmar. A partir da década de 1970, movimentos sociais feministas, antirraciais, étnicos, ambientalistas, Lgbtqia+, de imigrantes e refugiados, enfrentam o que Foucault chamou de governança.  

Tais movimentos, por um lado, demandam das democracias existentes o reconhecimento da interseccionalidade e da inclusão, pressionando os agentes políticos e econômicos; por outro, provocam uma reação conservadora radical, com destaque para o aspecto moral, liderada primeiramente pela Igreja Católica e depois espraiada pelas denominações neopentecostais.

O neoliberalismo avança, mas em direção contrária. Os movimentos sociais e a nova esquerda, que se liberta dos cânones conservadores e totalitários soviéticos, abrem espaços para pôr em xeque as práticas estruturantes capitalistas, patriarcais e racistas. É difícil estabelecer uma relação direta entre a expansão da extrema-direita e o fortalecimento dos movimentos sociais, considerando um a consequência do outro. O que interessa particularmente enfatizar é que os movimentos sociais, algumas vezes demonizados por setores da própria esquerda mais tradicional, são vistos pelo neoliberalismo do século XXI como inimigos a serem derrotados, de preferência eliminados. Isto não provoca apenas (o que já seria desastroso) uma ameaça à existência dos movimentos, mas à própria existência da democracia.

Tanto na prática militante política como nas preocupações dos profissionais da ciência política, é necessário entender a crise da democracia. Antes disso, porém, é preciso retomar o sentido da democracia e reconstruí-la. 

Talvez os pensadores do fim do século XX e início da XXI, com suas ideias de deliberação, participação e radicalização, tenham muito a ensinar. Todos eles e todas elas falam de poder, mais precisamente de desconcentração de poder. É preciso reconhecer que, durante este período, houve reflexões importantes sobre a questão democrática. Entretanto, após um momento de teorizações propositivas, como democracia deliberativa (Habermas, 2003; Elster 1998); democracia  participativa (Santos, 2002; Dagnino e Tatagiba, 2007); democracia populista (Laclau,2005; Panizza, 2005) ou democracia associativa (Hirst, 1994), os teóricos da ciência política buscaram entender a crise da democracia existente Brown (2019) Dardot, Laval 2016; Steven Levitsky, Daniel Ziblatt, 2018; Przeworsky, 2020; Miguel, 2022; Nobre, 2022; Bignoto, 2020;  Ribeiro, 2022). Esta necessidade tem sido mais forte na teoria do que na reflexão de formas de ultrapassá-la.  

Isto se relaciona diretamente com o crescimento de ideologias políticas antidemocráticas de extrema-direita, que se expandem com velocidade surpreendente nos últimos anos. É preciso buscar caminhos para uma retomada segura da democracia, capaz   de propor saídas que superem, a curto e médio prazo, ameaças a sua sobrevivência. Ao considerar as garantias de estado democrático de direito, nada está seguro e sedimentado.

Nesse ponto, gostaria de pensar no Brasil e na constituição como instrumento, como ferramenta da reconstrução ou, mais do que isso, como um avanço para formas mais robustas de garantia da democracia. 

A democracia brasileira não pode ser dependente de quem for o vitorioso nas eleições.

Um estado é mais democrático quanto mais pessoas estiverem envolvidas na tomada de decisão.  Quanto mais pesos e contrapesos forem garantidos para que a tomada de decisão não esteja nas mãos de poucos e seja consequência da vontade, para o bem ou para o mal, dos governantes de ocasião. É uma ilusão distribuir renda sem distribuir o poder. A história tem dado inúmeras lições sobre a  fragilidade de um sem o outro, seja com exemplos do fracasso dos países totalitários do chamado socialismo real, seja por  nosso  exemplo caseiro de governo que se encerrou em 31 de dezembro de 2022 e que destruiu todo o arcabouço de política distributiva  dos governos anteriores. 

A constituição brasileira recebeu, ao longo de seus 35 anos, até dezembro de 2022, 128 emendas, 14 delas no ano de 2022, o que representa 10.9 % do total. Entretanto, com um rápido passar de olhos, vê-se que poucas focaram no aprimoramento da democracia. Ao contrário, muitas foram generosas ao cortar direitos dos trabalhadores, perdoar dívidas, aumentar privilégios. Em relação ao aumento de direitos, destacam-se, a EC 72/2013, conhecida como Pec das domésticas, e a EC 81/ 2014, que possibilita a expropriação sem indenização de propriedade com trabalho escravo.

A constituição de 1988 tem grande potencial para favorecer o aprofundamento e consolidação de um regime democrático com a robustez necessária para construir um país com mais igualdade social e liberdade para todos. Ela traz no seu cerne a possibilidade de construir pesos e contrapesos, de impedir que interesses de grupos, às vezes até de indivíduos, possam ser razão para a tomada de decisão política. Não precisamos de uma nova constituição, nem de grandes reformas, necessitamos retomar filosófica e politicamente a constituição em sua peça original. E, então, agir para expandir o que lá está, desconcentrar poder de forma radical, democratizar a democracia.

Isto depende fundamentalmente da vontade política dos governantes, dos partidos políticos, da pressão da sociedade civil organizada, desde que estejam comprometidos com a democracia e com o bem-viver do conjunto da sociedade. As instituições per se não são suficientes para este hercúleo esforço. A única postura impossível de tolerar é ficar analisando e lamentando ad infinitum a crise da democracia, o avanço do pensamento neofascista, sem reagir à altura. Assegurar a inteireza da Constituição é não dar espaço que se apequene e fragilize ainda mais a democracia brasileira, em nome de uma pretensa governabilidade de governos eleitos pelo povo e dos interesses de seus apoiadores.

Se é preciso fazer alguma reforma na nossa constituição, é para democratizar o poder na direção de maior controle, mais pessoas tomando decisões, pensando a governabilidade como forma de eliminar a inenarrável desigualdade social brasileira, de acabar com a despreocupação relativa à falta de qualidade da educação para todas as crianças, adolescentes e jovens brasileiros. Não acredito em reformas constitucionais. A maior homenagem que brasileiros e brasileiras  eleitos e eleitas  deveriam fazer à constituição será lê-la, procurar entendê-la viabilizar, sem ficar procurando brechas para PECs pouco republicanas.

REFERÊNCIAS

BIGNOTO, Newton. O Brasil Procura a Democracia. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

BROWN, Wendy. Nas Ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Ed Politéia, 2019.

DAGNINO, Evelina e TATAGIBA, Luciana. Democracia, Sociedade Civil e Participação. Chapecó: Argos, 2007.

DARDOT. Pierre e LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.

ELSTER, Jon. Deliberative Democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

HABERMAS,  Jungen.  Direito e Democracia. Rio De Janeiro: Tempo Brasileiro, , 2003.

HIRST, Paul. Associative Democracy.  Massachusetts: University of Massachusetts Press, 1994

LACLAU, Ernesto. La Razón Populista. Argentina: Fondo do Cultura, 2005.

LEVITSKY Steven , ZIBLATT Daniel . How Democracies Die. New York: Crown Publishing, 2018.

MIGUEL, Luis Felipe. Democracia na Periferia Capitalista. – Impasses do Brasil. Belo horizonte: Autêntica, 2022.

NOBRE, Marcos. Limites da Democracia.  de junho de 013 ao Governo Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2022.

PANIZZA, Francisco. Populismo and the Mirror of Democracy. London: Verso, 2005.

PRZERWORSKI. Adam. Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar,2020.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala. São Paulo: Pólen, 2019.

SANTOS,  Wanderley Guilherme. A Democracia Impedida. O Brasil no Século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2017.

SANTOS, Boaventura de Souza( org). Democratizar a Democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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