Opinião
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22 de setembro de 2023
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06:45

Foi a alta dos juros que derrubou a inflação? (por Flavio Fligenspan)

Foto: Marcelo Cassal Jr./Agência Brasil
Foto: Marcelo Cassal Jr./Agência Brasil

Flavio Fligenspan (*)

Como muitos economistas acreditam, inclusive parcela dos economistas e dos organismos ortodoxos, a inflação experimentada no mundo desde 2020 se explica essencialmente por fatores do lado da oferta. Trata-se, portanto, de uma inflação de custos, não de excesso de demanda. A pandemia causou problemas de toda ordem nos processos produtivos integrados internacionalmente – cujo exemplo maior foi a escassez generalizada de chips –, interrompeu diversas cadeias produtivas e acabou por aumentar os fretes marítimos. Para completar o quadro negativo e somar pressões de custos à economia mundial, em 2022 começou o conflito entre Rússia e Ucrânia, com reflexos importantes nos mercados agrícolas e de energia. Insisto, todos fatores listados até aqui caracterizam uma inflação de custos.

A política econômica tradicional, representada atualmente na maioria dos países pela aplicação do sistema de metas de inflação, agiu como manda o manual; independentemente das causas da inflação (oferta ou demanda), subiu a taxa de juros. Em alguns casos, como no Brasil, subiu muito, e só recentemente começou um lento ciclo de redução.  

Três anos depois do início da pandemia e das transformações econômicas que lhe sucederam, as cadeias produtivas se ajustaram – não faltam mais chips e outros insumos industriais – e as pressões de custos saíram de cena. Os níveis de produção também voltaram ou já superaram os de pré-pandemia na maior parte do mundo e até a continuidade da guerra não tem causado tantos aumentos de preços de matérias primas como se pensava. Ou seja, mesmo com o terror da guerra e seu custo econômico, político e social, a repercussão sobre a economia mundial já arrefeceu. Há uma nova ordem mundial, com rearranjos produtivos e geográficos, novos ganhadores e perdedores, mas a pressão maior de custos passou.

Com o fim do ciclo das pressões de custos, a inflação naturalmente caiu bastante em todo o mundo, como era de se esperar. O curioso é que os defensores das políticas ortodoxas, especialmente da elevação dos juros, comemoram o que teria sido um caso de “sucesso”: a inflação ter cedido sem causar efeitos negativos importantes nos níveis de emprego e produto. Ou seja, a política monetária de arrocho teria debelado a inflação sem danos ou com pequenos danos.

Aqui parece haver um erro lógico, pois a racionalidade do arrocho monetário – juros altos – é justamente causar danos ao nível de atividade e, secundariamente, ao nível de emprego, para “segurar” os preços e/ou até forçar sua redução. Afinal, o objetivo de um aumento dos juros é travar a economia, ou porque se acredita que a demanda está muito aquecida, ou porque se quer sustar um efeito de contaminação de alta de preços ao longo das cadeias produtivas, ou mesmo para evitar uma espiral preços-salários. Se não há danos, como obter o resultado? Teria ocorrido algo especial e maravilhoso, em que só se obteve o efeito positivo dos juros altos, sem nenhum custo?

Ora, na verdade a alta dos juros teve, sim, efeitos negativos nos níveis de emprego e produto, mas tais efeitos foram contrabalançados por políticas fiscais super ativas no mundo todo. Diante da interrupção das atividades por conta da pandemia, os governos apoiaram fortemente as famílias e as empresas com programas caríssimos de sustentação do consumo e de sustentação financeira. Era o que devia ser feito na situação de extrema urgência, foi feito, e aumentou muito os estoques de dívida pública mundo afora. No Brasil, por exemplo, tivemos o Auxílio Brasil para as famílias e vários programas para empresas micro, de pequeno e de médio portes. Isto assegurou níveis mínimos de demanda e, com certeza, produziu um efeito oposto ao de contração da política monetária. Ironicamente, a elevação dos juros ainda ajudou a compor o ambiente de uma inflação tipicamente de custos, pois inflou o custo financeiro das empresas.

O fato é que não foi a política monetária de arrocho que segurou a inflação, mas sim o fim do período de pressões de custos, a reorganização das cadeias produtivas e o estabelecimento de um novo padrão para a produção industrial do mundo. Se a queda da inflação tivesse como causa central o juro alto, emprego e produto teriam que ter respondido com mais intensidade do que o fizeram, e nem mesmo as políticas de apoio dos governos seriam suficientes para sustentar e depois ultrapassar seus níveis de pré-pandemia. Ou seja, não foi a política monetária ortodoxa que teve sucesso, mas sim o final (natural) das pressões de oferta.

De fato, a política de juro alto atuou no sentido da redução do emprego e do produto, e foi neutralizada pela política fiscal dos governos, mas não atuou sobre os preços, que subiram por choques de oferta. Quando os efeitos negativos dos choques de oferta cessaram, a inflação cedeu. Não estamos diante de um caso de sucesso da política ortodoxa de controle da inflação. A não ser que se identifique sucesso na atuação a favor de uma redução de demanda quando o mundo inteiro estava semiparalisado, sofrendo as consequências da pandemia.

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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