Opinião
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29 de setembro de 2023
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14:58

Acalme-se, é apenas o fim do mundo novamente (por Tifani Isabele de Fraga Medeiros)

Arte de Florencia Merlo
Arte de Florencia Merlo

Tifani Isabele de Fraga Medeiros (*)

Cientistas meteorologistas vêm alertando sobre a ocorrência cada vez mais intensa e frequente de ciclones na região do sul da América do Sul. O mês de setembro deste ano foi marcado por ciclones e enchentes. Quando são reportados pelas mídias, esses eventos são interpretados como meros acontecimentos “naturais”. Com eles, há também a espetacularização do sofrimento das pessoas atingidas, além do peso em cima de indivíduos pelos desastres climáticos. Diferentemente do que acontece em protestos europeus pelo clima, não é comum vermos por aqui a grande indústria, a mineração, o desmatamento e o sistema econômico exploratório serem culpados por tais tragédias. 

Cada vez mais há um consenso maior de que vivemos em uma nova era geológica e política, o antropoceno. O conceito de antropoceno vem ganhando maior popularidade já há um tempo, desde final dos anos 1990 e início de 2000, quando o cientista atmosférico Paul Crutzen e o biólogo Eugene Stoermer sugeriram o fim do holoceno. Essa nova era geológica é marcada pela dimensão dos efeitos de caráter humano no planeta Terra, como o aquecimento global e o aumento da massa antropogênica. 

Apesar de evidências como essa do antropoceno, ainda há uma tendência de ver os desastres ambientais como acontecimentos meramente naturais e implanejados. Mas, tal como chama atenção a antropóloga Anna Tsing, os efeitos catastróficos das infraestruturas imperiais e industriais são o antropoceno, em todos os seus terrores, em diferentes lugares, porém com razões interligadas. O antropoceno, então, é sobretudo político. Ele se mostra presente com o derretimento das geleiras ao mesmo tempo que há uma forte onda de calor na Europa. Em nosso contexto nacional, nos últimos dias as temperaturas em São Paulo chegavam aos 40 graus enquanto uma enchente começava no Rio Grande do Sul. 

Na manhã de segunda-feira (25/09) o então prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, apressou-se na “necessidade” de fechar as comportas do Cais Mauá, localizado no Centro Histórico da capital. Tão cuidadosa a sua equipe parecia. A água, então, subiu e subiu. Pela manhã de quarta-feira (27/09), a medida do Cais já marcava 3,17 metros, segundo a Defesa Civil. O Centro Histórico de Porto Alegre estava protegido de um alagamento maior. No entanto, as outras regiões nas quais o Guaíba circunda foram surpreendidas com uma grande enchente, sendo considerada agora a segunda maior desde 1941. Mas toda a água, já que está desaguando bem menos do que o esperado do rio Jacuí desde o início do mês de setembro, precisava desaguar em algum lugar. E assim foi nas ilhas e outros bairros de Porto Alegre, nos municípios de Guaíba, Eldorado do Sul e Barra do Ribeiro. O fechamento das comportas do Cais ajudou com que a água não invadisse o Centro Histórico, mas que se espalhasse em regiões hidrográficas mais baixas com a velocidade do vento sul. Mais acima, no sudeste brasileiro, o calor era sufocante. Já no norte, a floresta amazônica enfrenta uma seca notável. 

Em Eldorado do Sul a água subiu rapidamente na madrugada de terça para quarta-feira. Enquanto era entrevistado em uma reportagem televisiva, um morador da cidade juntava o que restava dos pertences de sua filha após a casa da mesma estar totalmente alagada, com a água batendo nos joelhos: “Coitada da minha filha. Trabalha, luta pra ter as coisas dela e, olha só, tudo perdido!”. Atrás dele, uma colagem de fotos estampavam momentos felizes de uma vida construída. Pareciam ser de sua filha com as crianças pequenas e fragmentos de um ensaio fotográfico de gestante. No bairro Arquipélago, as ilhas da cidade de Porto Alegre, com várias regiões nas quais já estavam alagadas, quase não sobrou uma casa sem ficar inundada, seja mansão ou não. Na cidade de Guaíba todos os bairros localizados perto das águas ficaram alagados, e o volume passava a altura das paredes das casas em algumas ruas. 

Não podemos mais normalizar o fato de que todo ano as pessoas mais vulneráveis da ordem econômica percam tudo. Há quem fale que neste ano a popularmente chamada enchente de São Miguel foi além do esperado. Mas é injusto culpar o santo. O período de troca de estações já é conhecido como muito chuvoso e o fenômeno El Niño acentua o grande volume de chuvas. Porém, um dos argumentos neoliberais frente ao antropoceno é que não há o que fazer contra a força da dita mãe natureza. Será? De uma coisa nós já sabemos: o antropoceno, apesar de irregular em seus efeitos, penaliza mais as pessoas pobres, as não-brancas, as mulheres, as crianças e as vidas não-humanas. 

O filósofo Ailton Krenak (2019), antes mesmo da pandemia do Covid-19, sugeriu que o mundo pela perspectiva ameríndia já acabou diversas outras vezes, e continua acabando. Seja pelas epidemias, exploração de corpos e terras, sujidades em correntes de água, invasões, desmatamentos e diversas outras causas. Enquanto para as ciências ocidentais o antropoceno se configura como risco de uma ameaça do possível fim da espécie humana, possível “fim do mundo”.

Diferentemente dos filmes de ficção, os quais tematizam o fim do mundo – como 2012 e Não olhe para cima – ele não será rápido e indolor, e nem sobrará um herói aventureiro no final, como acontece nesses filmes. Pois na realidade, o fim do mundo já está acontecendo com ondas de calor extremo, imprevisibilidade no clima, acidificação dos oceanos, ilhas de plástico, enchentes e deslizamentos. Porém, segundo Krenak, esse imaginário distópico do fim do mundo como um acontecimento extremo não é evitável, mas sim adiável. Para adiar o fim do mundo, então, é necessário não mais culpabilizar os eventos climáticos, e sim o capital. É o capitalismo, essa entidade suprema que não gosta de gente, que destrói as florestas e elimina as minorias políticas. 

Essa é a única previsão do tempo na qual você pode confiar com toda certeza. 

Referências:

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

TSING, Anna Lowenhaupt. O Antropoceno mais que Humano. Ilha, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 176-191, 2021.

Brasil de Fato. Porto Alegre fecha comportas de contenção de enchentes do rio Guaíba; previsão é de mais chuva na região. Porto Alegre (RS), 25/09/2023 às 20:37h. 

Prefeitura de Porto Alegre, Gabinete do prefeito. Lago Guaíba atinge maior nível em 82 anos no Cais Mauá. 27/09/2023 às 14:15h.

(*) Tifani Isabele de Fraga Medeiros é mestranda em Antropologia Social (PPGAS-UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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