Opinião
|
20 de agosto de 2023
|
10:17

Quem deu a ordem para não atirar? (por Milton Pomar)

Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Milton Pomar (*)

As polícias mataram mais de 50 mil pessoas no Brasil, e feriram quantidade desconhecida, nos últimos 30 anos. Para isso, atiraram pelo menos um milhão de vezes. Episódios com cinco, dez e até 20 mortos, e centenas de tiros cada um, tornaram-se rotina nos noticiários, que repetem de maneira acrítica o tradicional “mortos em confronto com a polícia” – confrontos nos quais, invariavelmente, só há mortos do lado dos “bandidos” (em geral, do “lado de lá” não há nem feridos…).

A polícia brasileira mata três vezes mais do que a dos Estados Unidos (EUA). Considerando-se o tamanho da população dos dois países, significa que os policiais do Brasil matam cinco vezes mais do que os dos EUA. 

O recorde nacional é da cidade de São Paulo, na qual em apenas dez dias, em maio de 2006, foram mortas 505 pessoas pela polícia, das quais 122 com características de execução, em revide ao assassinato, por integrantes de facções criminosas, de 59 agentes públicos. Impossível saber o total de tiros disparados. 

A polícia militar (PM) brasileira é reconhecida por sempre agir com extrema violência, inclusive em manifestações pacíficas, como a das professoras e professores em Curitiba, dia 30 de abril de 2015. Foi um massacre: além de jogar bombas e atiçar os cães contra professoras(es) e jornalistas, os policiais bateram com cacetetes. Da ação policial resultaram 213 pessoas feridas. 

Soldados do Exército quando fazem as vezes de polícia também atiram muito, inclusive contra pessoas inocentes, como no caso do fuzilamento do músico Evaldo dos Santos Rosa, ocorrido em 7 de abril de 2019 – 257 disparos! 

Todos esses fatos ressurgem desde a notícia da prisão, dia 18 de agosto, pela Polícia Federal, de cinco coronéis, um major e um tenente, comandantes da Polícia Militar do Distrito Federal (PM-DF), por suspeita de participação na barbárie ocorrida em Brasília dia 8 de janeiro. Essas prisões resultaram das investigações realizadas pelo Grupo Estratégico de Combate aos Atos Antidemocráticos da Procuradoria Geral da República, que produziram as provas necessárias à identificação dos cúmplices dos golpistas na PM-DF e em outros órgãos de segurança. 

Detalhe: a prisão dos oficiais da PM-DF é noticiada pela mídia como tendo sido por “omissão”, o que induz a erro – passa a ideia de que simplesmente não agiram quando deveriam ter agido. Ocorre que no caso da responsabilidade dos cargos deles, não há a possibilidade de apenas omissão ou conivência – o que houve foi cumplicidade, por concordância ideológica com os golpistas que vandalizaram totalmente os prédios públicos.

Havia em Brasília naquela tarde do dia 8 de janeiro uma situação inequívoca de batalha campal – estimadas quatro mil pessoas, dispostas a quebrar os prédios e o que havia dentro dos prédios, como efetivamente fizeram, agindo de maneira semelhante à ocorrida na invasão do Capitólio, em Washington, em 6 de janeiro de 2021. 

As semelhanças entre os dois acontecimentos são impressionantes: publicamente estimulados por Donald Trump, líder da extrema-direita e ex-presidente dos EUA, derrotado nas urnas e alegando sem provas ter ocorrido fraude nas eleições, cerca de três mil manifestantes invadiram e depredaram o Capitólio, sede do Congresso norte-americano, para tentar impedir a declaração formal de vitória do candidato Joe Biden.

Os adeptos de Trump foram contidos pela polícia, apesar da desvantagem numérica. O resultado foi trágico: cinco vítimas fatais (dois manifestantes e três policiais) e 140 policiais feridos. Nos meses seguintes, quatro policiais que atuaram no episódio se suicidaram. Agora já se sabe que houve ações prévias para dificultar a reação policial, e inclusive para retardar a atuação da Guarda Nacional.

Lá como cá é evidente que houve não apenas estímulo e comando, mas também cumplicidade de quem deveria agir em situações assim e não o fez. E pior: agiu antes dos acontecimentos de maneira a retardar a reação dos efetivos policiais e militares, para dar tempo da invasão e da depredação acontecerem, consumando o fato político. Em linguagem da área, sabotagem. 

Com a diferença, no caso brasileiro, de que a depredação pela extrema-direita dos prédios públicos em Brasília ocorreu dois anos após a invasão do Capitólio, houve tempo de sobra para as forças de segurança se prepararem para algo semelhante no Brasil, na eventualidade do então presidente de extrema-direita (que igualmente alegava sem provas ter havido fraude) perder as eleições. 

A cumplicidade do comando da PM-DF – e do Comando Militar do Planalto, ao qual está subordinado o efetivo militar de segurança do Palácio do Planalto, equivalente a um batalhão (800 militares) – ficou evidente pelo fato dos soldados da PM e do Exército não terem atirado contra os invasores, nem antes, nem durante a depredação. Pela lógica seguida pelos policiais e militares brasileiros, era caso de atirar sem dó nem piedade. Se não atiraram, é porque receberam ordem para não atirar. 

Aliás, não atirar nem bater em ninguém. Certamente porque havia muitos policiais e militares (e parentes deles) entre os manifestantes de extrema-direita que cometeram os atos terroristas. 

E quem deu a ordem para não atirar nos invasores do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto estava no topo da hierarquia, porque a ordem foi cumprida. Caberá às investigações em curso descobrir quem deu a ordem para não atirar, que é quem efetivamente comandou toda a barbárie do 8 de janeiro de 2023 em Brasília.

(*) Mestre em “Estado, Governo e Políticas Públicas”

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora