Opinião
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21 de agosto de 2023
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17:37

Os BRICS e o poder monetário e financeiro global (por André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Andrés Ferrari)

Presidente Lula desembarca em Joanesburgo, África do Sul, para Cúpula dos BRICS. (Foto: Ricardo Stuckert/PR)
Presidente Lula desembarca em Joanesburgo, África do Sul, para Cúpula dos BRICS. (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Andrés Ferrari (*)

Uma Ideia Ridícula?

Jim O’Neill era o economista-chefe do Goldman Sachs quando o acrônimo BRIC foi inventado. No “Dreaming with BRICs: The Path to 2050”, projetava-se uma nova conformação da economia global na metade do século XXI, com Brasil, Rússia, Índia e China configurando  entre as seis maiores rendas do mundo. Aquilo que era um exercício de construção de cenários de longo prazo acabou ganhando vida própria. O novo acrônimo tornou-se parte essencial no léxico do poder global, agora crescido de um “S” para incluir a África do Sul (“South Africa”), e uma parceria formal entre os cinco países. Nesta semana, em Johanesburgo, realiza-se a sua 15ª reunião de cúpula. Na mesa dos seus líderes está o projeto de expansão da aliança, com inclusão de novos países no New Development Bank (NDB) e a retomada da ideia de criação de uma moeda comum.

Em entrevista à Fortune, O’Neill expressou assim seu ceticismo quanto à criação de uma moeda dos BRICS: “É simplesmente ridículo… Vão criar um banco central do BRICS? Como você faria isso? É quase embaraçoso.”. O´Neill acha mais plausível ampliar o uso das próprias moedas nacionais para viabilizar o comércio internacional com menor utilização do dólar, do que criar um novo instrumento. Dylan Kremer, investidor-chefe da gestora Certuity, vai na mesma direção e argumenta que, a despeito do seu tamanho – 42% da população global, 30% do território, 23% do PIB e 18% do comércio” –, as nações que compõem os BRICS não projetam estabilidade política suficiente para galvanizar a confiança dos investidores.

O’Neill não vislumbra chances de aprofundamento as relações monetárias e financeiras no bloco de emergentes sem que antes China e Índia abandonem suas rivalidades históricas: “É um bom trabalho para o Ocidente que a China e a Índia nunca concordem em nada, porque se o fizessem, o domínio do dólar seria muito mais vulnerável…. Costumo dizer aos formuladores de políticas chineses… esqueçam suas intermináveis ​​batalhas históricas e tentem convidar a Índia para compartilhar a liderança em algumas grandes questões, porque então o mundo poderá levar vocês um pouco mais a sério”.

O influente economista sentencia: “A China e a Índia não conseguem nem chegar a um acordo sobre coisas básicas, como uma fronteira pacífica. Quero dizer, como diabos as pessoas podem acreditar seriamente que esses caras vão introduzir uma moeda compartilhada?”.

O Tempo e o Vento 

O tempo joga a favor de civilizações milenares como Índia e China. E os ventos do poder sopram mais fortes no Oriente. Em dezembro de 2022, um novo estudo do Goldman Sachs reavaliou as projeções anteriores e estabeleceu novos marcos para a distribuição do produto interno bruto mundial no terceiro quartel deste século. Em “The Path to 2075 — Slower Global Growth, But Convergence Remains Intact”, trabalha-se com um horizonte de desaceleração no crescimento da renda (3% a.a.) e da população (de 1% a.a. para 0% a.a.) em nível internacional, com os emergentes apresentando um maior dinamismo com relação dos países centrais. Com isso: “… as cinco maiores economias do mundo em 2050 (medidas em dólares reais) serão a China, os EUA, a Índia, a Indonésia e a Alemanha (com a Indonésia substituindo o Brasil e a Rússia entre os maiores mercados emergentes). Até 2075, com políticas e instituições apropriadas, Nigéria, Paquistão e Egito poderão estar entre as maiores …”.

Em 2075, as dez maiores economias do mundo, com seus respectivos produtos a preços constantes de 2021, seriam: China (US$ 57 trilhões), Índia (US$ 53 trilhões), EUA (US$ 51 trilhões), Indonésia (US$ 14 trilhões), Nigéria (US$ 13 trilhões), Paquistão (US$ 12 trilhões), Egito (US$ 10 trilhões), Brasil (US$ 9 trilhões), Alemanha (US$ 8 trilhões) e Reino Unido (US$ 8 trilhões) (ver gráfico 17, p. 21). Neste novo mundo, a Índia atingiria a população de 1,7 bilhão de pessoas, a maior do mundo, seguida de China (1 bilhão), Nigéria e Paquistão, ambas com 0,5 bilhão. A maior renda per capita neste grupo seguiria com os EUA: US$ 132 mil; em um patamar duas vezes e meia maior que o da China e Egito (US$ 55 mil) ou entre quatro a cinco vezes maior do que Índia (US$ 31 mil) e os demais emergentes em destaque.

As análises atuais sugerem que, para os próximos dez anos, ainda predominará o status quo, com o dólar representando mais da metade dos ativos de reserva e referência para contratos comerciais e financeiros. Desde o início deste século, a moeda estadunidense já perdeu dez pontos percentuais no portfólio dos bancos centrais ao redor do mundo, conforme sugere estudo recente publicado pelo Fundo Monetário Internacional (IMF). Este movimento de diversificação seguirá na próxima década, caso se concretize o planejamento dos bancos centrais consultados na edição de 2023 do “Global Public Investor”. Já no mundo desenhado pelo Goldman Sachs em 2075, quais instrumentos predominariam? Os argumentos de O’Neill não podem ser descartados a priori, especialmente quando se toma por referência um presente ainda contaminado pela hegemonia estadunidense e pelos conflitos da transição em curso. Todavia, tão ridículo quanto imaginar uma moeda dos BRICS surgindo nos próximos dois ou três anos com força para desbancar o dólar, seria descartar a hipótese de que isso possa acontecer no futuro. 

“Big BRICS”?

Analistas ocidentais olham com maior ceticismo para a possibilidade de alargamento do BRICS. A The Economist informa que, entre pedidos formais e sondagens, cerca de quarenta nações teriam interesse em fazer parte deste grupo. A China veria neste alargamento a possibilidade de alavancar sua influência internacional, causando constrangimentos aos demais parceiros, especialmente a Índia. Para a prestigiosa revista britânica, as heterogeneidades, as contradições e os limites institucionais do BRICS seriam ainda maiores do que os já existentes no G7. A busca de espaços ampliados de interlocução e de resistência às pressões ocidentais fazem do BRICS um ativo estratégico para a China. 

Para a The Economist: “… Pequim quer admitir mais países do Sul Global. O raciocínio é quase newtoniano: a união dos Estados Unidos com os aliados ocidentais está levando a China a buscar uma reação igualitária e oposta, por meio do BRICS. Visto pela perspectiva chinesa, não há outro bloco que possa ser um contrapeso ao G7. A Organização de Cooperação de Xangai é muito eurasiana. O G20 é muito dominado por seus membros ocidentais. …”. Por isso mesmo, a China “… defendeu a admissão da África do Sul. Desde então, levantou repetidamente a ideia de adicionar mais membros, especialmente após a invasão da Ucrânia pela Rússia. Embora os BRICS digam que suas decisões são baseadas em consenso, a China é difícil de ignorar. Sua participação na renda dos BRICS foi de 47% em 2001; hoje é 70%. Em 2022, representou 69% de todo o comércio do grupo (soma das importações e exportações dos membros), ante 55% em 2001.” 

A Agência Reuters também destaca que o alargamento do bloco está longe de ser um consenso interno, refletindo mais o desejo da China de ampliar a sua influência nos múltiplos espaços estratégicos. A The Economist aposta no crescente sentimento negativo das sociedades com respeito ao governo chinês. Com base em pesquisa de opinião recente da Pew Research Centre constatou-se que “Na África do Sul, 40% dos entrevistados tinham uma visão desfavorável da China, contra 35% há quatro anos. No Brasil e na Índia, o sentimento desfavorável atingiu os níveis mais altos desde o início das pesquisas em 2010 e 2013, respectivamente. No Brasil a participação passou de 27% para 48%; na Índia, de 46% para 67%.”.

A CNN reverbera a opinião de que a China é uma ameaça, pois segue no curso para transformar a ordem internacional e suplantar o modelo “liberal” liderado pelos EUA. O NYT enfatiza a ausência de Putin, que participará por videoconferência, e as rivalidades internas do bloco, que seria “… tão divergente quanto grande, e às vezes prejudicado por interesses conflitantes e rivalidades internas”. O Financial Times aponta que o objetivo principal da China é transformar o grupo BRICS na sua principal arma geopolítica contra o G7.

O economista-chefe do African Export-Import Bank, Hippolyte Fofack, vai na direção contrária do establishment ocidental. Para ele, mesmo que no curto prazo prevaleça a inércia da hegemonia estadunidense e de um sistema monetário e financeiro dólar-cêntrico, o futuro se desenha cada vez mais diverso: “… a rigidez dos arranjos institucionais, juntamente com a amplitude e a profundidade dos mercados financeiros dos EUA, garantirão o domínio do dólar por algum tempo. Mas um grupo BRICS ampliado criaria uma coalizão geopolítica com o poder de acelerar a desdolarização e de liderar a transição para um mundo mais multipolar … Parece provável, então, que a 15ª Cúpula do BRICS será a mais importante até agora.”

Benn Steil não vê instrumentos alternativos mais eficientes do que o dólar. Mais do que a concorrência chinesa ou do BRICS nesta esfera, o que pode ameaçar Washington e Wall Street é a própria disputa intestina e radicalizada da política doméstica estadunidense. 

Os BRICS e o Poder Monetário e Financeiro Global

O copo das transformações da ordem global segue “meio cheio, meio vazio”. Os analistas ocidentais são pródigos em criticar a ascensão da China e demais poderes emergentes, bem como diminuir a legitimidade das distintas visões sobre o presente e o futuro da civilização humana. Superestimam as conquistas do Ocidente nos últimos duzentos anos. O progresso material do capitalismo industrial não disseminou prosperidade para todos ou “paz perpétua”. São legítimas as críticas à hegemonia estadunidense, ao neoliberalismo e ao uso do dólar e das instituições nele centrado como armas geopolíticas. Estranho mesmo é que o establishment estadunidense, seus financistas, acadêmicos e analistas não considerem mais do que natural o anseio dos países emergentes em quebrar os “grilhões” que prendem muitos povos e limitam as possibilidades de construção de sociedades menos injustas e um pouco mais afluentes.

Da mesma forma, não se pode subestimar os desafios que se colocam para os países do assim-chamado Sul Global, particularmente no que tange às rivalidades internas e às fragilidades políticas e institucionais. Na área monetária e financeira o recorrente anúncio de ocaso do dólar parece ter mais a ver com cenários do que pode vir a ocorrer em um futuro ainda incerto, do que com evidências de um processo consistente de repúdio à moeda estadunidense. Há, de fato, um movimento de diversificação de ativos de reserva por parte das autoridades monetárias e a ampliação no uso de moedas emergentes, como o renminbi, em pagamentos internacionais. Tais processos podem ganhar impulso adicional com a inclusão de mais países nos BRICS, a ampliação do escopo das parcerias entre os poderes emergentes e os demais países do assim-chamado Sul Global, e as inovações tecnológicas e institucionais em curso, a exemplo do e-CNY, do Cross-Border Interbank Payment System (CIPS), dos bancos multilaterais que estão fora do controle ocidental, como o New Development Bank, para citar alguns. 

Fundamentalmente, o futuro do sistema monetário e financeiro internacional está diretamente atrelado aos desdobramentos das disputas pelo poder global, onde a reação dos EUA e seus aliados não pode ser menosprezada a priori. Neste campo, o horizonte segue em aberto.

(*) Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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