Opinião
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29 de agosto de 2023
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07:20

O Parque das Irmãs Magníficas (Coluna da APPOA)

Reprodução
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Lucia Serrano Pereira (*)

A primeira vez que ouvi este título algo soou estranho, me perguntava o que havia produzido o efeito… Localizei em “irmãs magníficas”, o que era? Traduzi como uma sensação de certo excesso contida na expressão. Poderia ser como algo demoníaco, como daqueles filmes de terror, talvez duas irmãs gêmeas diabólicas, quem sabe uma novela de Stephen King. Nada disso restou, a não ser um rastro do excesso. Excesso da violência, da crueza, da “festa” e do horror que a narrativa de Camila Sosa Villada imprime em apresentar as travestis do parque Sarmiento (a zona vermelha de Córdoba, na Argentina), sua comovente comunidade, seus destinos, suas histórias de vida e mesmo de sobrevivência.

Acompanhamos as vidas de várias personagens que compõem o grupo do Sarmiento. Singulares, diversas; aos poucos o ar vai ficando denso (e a tensão!?) e e adentramos nessa mistura de força e desamparo. O parque constitui um núcleo noturno e poderoso onde tudo acontece e que vai se expandir em outra selva.

Força porque a forma pela qual elas se reúnem em torno de tia Encarna cria a experiência de um laço fraterno de ajuda, de convívio, permeado pelas comemorações e pelos rituais da vida. Para além do perímetro do parque está a comunidade que estabelece um novo familiar, onde as histórias anteriores, de cada uma em suas famílias de origem foram histórias de abandono e de rechaço, vergonha, expulsão pelo encontro da experiência infantil, púbere ou adolescente que vai surgindo na intimidade de cada uma e entrevista pelos próximos.

Vestir as roupas e os sapatos maternos, experimentar um batom, comprar às escondidas uma maquiagem, escrever um conto de amor a um professor e ser denunciado…  Buscar compor com retalhos obtidos aqui e ali – lençóis velhos, vestidos das tias – uma roupa mais ousada combinando com os saltos altos, ou aquele modelo incrível da botinha de nobuk, tudo isso vai encontrando o olhar do outro, agressividade e violência rondando. Frequentar lugares, os dancings, o desejo irresistível de poder ser vista na exuberância da sexualidade que eclode e que pede lugar.

Mas claro, esse lugar precisa ser buscado em outras paragens, inaceitável na proximidade, na culpa e na fuga do ódio que faz com que a vida travesti seja empurrada para a distância. Por vezes a vida diurna de um homem, para que a noite possa ser o encontro com a outra cena. Por vezes a de um estudante que vai para a universidade e assim vive de dia, para que a noite acolha a passagem para o parque Sarmiento com o grupo de chegada. A nova família que se organiza vai atravessar, a partir de tia Encarna, a experiência trágica que vemos se desdobrar por Encarna e seu grupo ousarem tocar a função da maternidade nesse lugar.

O horror? A violência, o insuportável do próprio desejo que se derrama inexoravelmente sobre as travestis. O cliente que se enraivece e bate ( cliente, porque a prostituição ali comparece, fosse por desejo ou por sobrevivência).  Depois da satisfação alcançada por aquele que buscou a travesti na noite, vem a tentativa de apagar, eliminar o que fez a atração, e dali ao espancamento é menos que um passo. Ou acusar de roubo vomitando e mijando na cama. Cortando à navalha ou chutando fora. E ainda a polícia em cima, ou a vizinhança que pixa o casarão.

“Eu me pergunto o que teria acontecido se, em vez de mandar a raiva para o mais profundo de nossa alma travesti tivéssemos nos organizado. Mas o que aconteceu? O que ganhávamos por engolir o veneno? Morrer jovens.”

A raiva e impotência imensa, a vontade permanente de por fogo em tudo, e a luta por sobreviver. Sobreviver frente a um voto de morte, podemos pensar.

O medo constante vem nos capítulos que entremeados com a vida no parque é contado por Camila, a narradora, desde sua infância. Acompanhamos como vai acontecendo sua transformação, e com o que ela se enfrenta.

“ O medo tingia tudo em minha casa. Não teve polícia nem clientes nem crueldades que me atemorizaram mais que meu pai. Em honra à verdade, acredito que ele também sentia um medo pavoroso de mim. É possível que aí seja gestado o pranto das travestis: no terror mútuo entre o pai e sua cria travesti”.

Acontecem flashes de fantástico no meio da vida alucinada: tia Encarna tem 178 anos; em Maria – nascem penas em seu corpo até virar um pássaro ( aprisionada em uma gaiola para proteção do ataque dos gatos).  Em um momento de luto elas choram tanto que ao torcerem suas roupas enchem uma piscina com lágrimas; e Natalí, a sétima filha homem, nas noites de lua cheia, se transforma.

Camila Sosa Villada, nascida Cristian Omar, dá uma entrevista já anos depois da grande repercussão de seu livro cujo título original é Las malas, As más. A entrevistadora pergunta a ela: “Quanto tinha de você em O parque das irmãs magníficas?” E Camila dá essa resposta de escritora, surpreendente. Diz que em algum momento começou a pensar: “De onde tiraram que o  livro era autoficção?”

Fácil de fazer essa correspondência, podemos pensar. A narradora Camila, a cidade da infância em Mina Clavero, na Argentina, a história do jovem que vai a Córdoba para a faculdade, e uma porção de outros elementos.

Mas ela insiste: “Em que entrevista eu disse isso?” Em que parte do livro dei a entender que o que eu estava escrevendo tinha acontecido assim, como se fosse uma crônica?”

Aponta certa imprudência primeiro por parte dos leitores, e depois por parte dos jornalistas, de atribuirem a ela toda a épica do Parque como se fosse ela a ter vivido isso.

Diz de Mina Clavero, onde começou a se travestir e a ser perseguida, o lugar onde a fizeram saber quem era e de que  tipo de pecado estava fazendo ao se travestir. Mas não abre mão da ficcionalidade que produziu. A história de O parque, afirma ainda, “é uma história suja, cheia de sêmen e de sangue, de falta de comida e de amor”.  Ela faz parte desse tempo, do que era ser travesti há vinte e cinco anos atrás, de um tempo em que apenas algumas delas sobreviveram. E que são capazes – isso é o que ela puxa para si e faz questão de deixar sublinhado mais do que afirmar uma correspondência direta – de inventar personagens, mundos, universos ficcionais.

Ficamos nós leitores por decidir entre o testemunho e a ficção? Forma talvez de poder fazer passar o que excede, o que não se tem como dizer diretamente na borda dos  abismos.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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