Opinião
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15 de agosto de 2023
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07:08

A propósito do Dia dos Pais (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Gerson Smiech Pinho (*)

Um dos momentos marcantes na experiência da paternidade seguramente é aquele em que se é chamado, pela primeira vez, de pai por um filho. Em meio à massa pouco diferenciada de sons balbuciada pela pequena criança, sem que se espere, escuta-se a palavra “papai”. A surpresa frente a esse instante inaugural costuma dividir o tempo entre um “antes” e um “depois”. Trata-se de uma espécie de batismo às avessas, já que, ali, é a criança quem nomeia o pai.

Produto de uma nomeação, a paternidade, assim como a maternidade, não é uma propriedade natural que se liga de modo exclusivo às relações biológicas de sangue. Ao contrário, é tecida pela experiência que viabiliza o estabelecimento de um certo laço entre duas pessoas.

Quando se fala da paternidade, rapidamente se evoca a função de um pai junto à sua prole – em geral associada à exploração de novos espaços, aos desafios e às conquistas. Nessa direção, a figura do pai é tradicionalmente relacionada ao distanciamento da criança do espaço protegido da família para lançá-la em direção às aventuras do mundo e às adversidades da vida. Como muito bem se sublinha na psicanálise, esta tarefa constitui um dos aspectos da “função paterna” que, nas multiformes famílias atuais, cada vez menos é encarnada por um personagem único ou específico e pode ser experimentada em uma pluralidade de laços e referências. 

Contudo, se evocamos com facilidade as funções que se espera que pais e mães protagonizem junto às crianças, pode ser interessante inverter os termos para interrogar também os efeitos da chegada dos filhos na subjetividade de quem os acolhe. Que experiência esse outro, que é o filho, pode inaugurar na vida de quem encarna o ofício de pai?

Nas duas vezes em que me tornei pai, ao tomar contato com minhas filhas pela primeira vez, tive a curiosa impressão de que nos relacionávamos há tempos, como se fossemos velhos conhecidos. Em cada ocasião, o rosto estranho, com o qual me deparava naquele instante, parecia inesperadamente familiar – identificação de si próprio no outro, fora de si, em que emergem simultaneamente reconhecimento e estranhamento.

Na experiência da paternidade, há uma profunda relação de identificação a esse semelhante que é o filho ou filha que, ao mesmo tempo, é estranho e distinto. Alguém de quem não se pode tomar posse como se fosse um objeto em relação ao qual se pudesse dizer que é “meu”. Ter um filho implica em se reconhecer em um outro e, ao mesmo tempo, suportar que este possa se separar e tomar distância. O estabelecimento do duplo movimento, em que se compartilha um traço com o próximo do qual também se diferencia, implica tanto a responsabilização pelo outro quanto a impossibilidade de se apossar dele. Trata-se de um laço que encontra um limite, que não é totalizante e que, por esta razão, se estabelece a partir de um interdito fundamental.

Com a passagem do dia dos pais, nesse último domingo, escrevo esse texto como uma pequena homenagem a todos que se embrenham nessa aventura que é a paternidade. Travessia que implica em uma transmissão que não se assenta na mera continuidade, na qual se buscaria uma realização no filho de todos os desejos que de alguma forma não se consegue conquistar. Desde o ponto de vista ético, a paternidade constitui um ponto fundamental para apreensão da alteridade, o qual pode atravessar o laço com o semelhante em suas mais diversas nuances.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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