Opinião
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28 de julho de 2023
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16:51

Estará o governo confundindo os dedos com os anéis? (por Céli Pinto)

Foto Lula Marques/ Agência Brasil.
Foto Lula Marques/ Agência Brasil.

Céli Pinto (*)

Não se espere do chamado Centrão, que domina a câmara de Deputados, nenhum sentimento republicano, seria uma ingenuidade política. As lideranças do grupo não têm meias palavras quando se trata de negociar com o Poder Executivo, querem ministérios e empresas estatais que tenham muito recurso, ou seja, paguem.

Nos 4 anos de desdemocratização que o país viveu sob o governo Bolsonaro, a esfera pública foi apropriada de maneira escandalosa por interesses privados e aprofundou este “toma lá, dá cá” que constitui historicamente a política brasileira. A apropriação desmedida e despudorada reduziu a política a este balcão de negócios. Nada ficou de fora, nem a vida dos brasileiros em meio a uma pandemia.

Não sejamos ingênuos, a política não é um espaço de bondades infinitas. Há negócios escusos, há interesses políticos locais, há interesses legais e outros claramente ilegais. Isto acontece, em menor ou maior intensidade, em quase todos os países do mundo. Mas o Brasil, depois da passagem da extrema-direita pelo poder, apresenta diferenças fundamentais que se refletem tragicamente no governo de Lula: nas negociações atuais, não existe a busca de apoio a um programa político, mesmo que seja uma abertura para um projeto de centro conservador. Não há nada próximo a uma tentativa de concertação para levar o governo liderado por Lula a bom termo, o enfrentamento dos grandes problemas brasileiros não faz os deputados do chamado Centrão perderem 30 segundos do seu tempo. O que ocorre atualmente tem o nível de negociação de sequestradores com a família de sequestrados: ou paga, ou a vítima morre, com o perigo de os bandidos de ocasião blefarem e não entregarem a vítima.

Não se trata de esquerdismo ou radicalismo, mas de exigir um mínimo de decência. Nunca se ouviu um líder do Centrão mencionar um único projeto político para a pasta pretendida, ou uma única crítica aos ministros nos cargos. O que esta negociação revela é a desestruturação a que chegou a vida política do país. Todas as questões se resumem a dinheiro, a recursos, a garantia de currais eleitorais no Brasil profundo.

Temos de admitir que a vitória de Lula não representa a chegada da centro-esquerda no Brasil, nem um projeto minimamente coerente, capaz de ser acordado no legislativo. 2022 elegeu a maioria dos governadores de direita, um Congresso Nacional de direita e um presidente com menos de 2% dos votos de diferença daquele que representava um projeto autoritário de feição neofascista. Mas, ao mesmo tempo, temos de ter presente que boa parte dos votos na direita e na extrema-direita foram angariados sob ameaças de empregadores e farta distribuição de recursos para deputados e candidatos, além de politicagem eleitoreira, fantasiada de política social. Portanto, é preciso matizar este inimigo, ele pode não ser tão poderoso como parece. Ainda que não deva ser minimizado, talvez não precise ser alimentado com polpudos recursos.

Admitamos que o governo, frente ao poder do Centrão, deva entregar os anéis para manter os dedos. No caso atual, os anéis e os dedos não estarão se confundindo? Se o PT e seus partidos mais próximos, base do governo, acharem que os anéis são as mulheres, os negros, os indígenas, os ministérios do Desenvolvimento e Assistência Social, da Cultura, da Mulher, dos Direitos Humanos, dos Povos Originários, as empresas estatais, sabe quem vai sobrar? Os leitores de Bolsonaro. Os estrategistas do governo têm a obrigação de saber que, em 2026, esta gente que quer tomar ministérios e estatais vai sair do governo para apoiar quem for indicado pela direita. Ministros saíram do governo de Dilma Rousseff num dia para, no próximo, votarem a favor de seu impeachment. Nunca se aprende nada neste país?

Bem, diriam o leitor e a leitora, ou entregamos o que os sequestradores pedem, ou não governamos. Sim e não. É necessário negociar, mas isto não pode ser feito como se vivêssemos em 1980. O Brasil mudou, se transformou. É verdade que o país está mais à direita, mas também é verdade que os setores progressistas, não só especificamente da esquerda tradicional, estão mais organizados, conquistam seus lugares de fala, não aceitam mais ser plateia (ou até claque) de homens brancos, velhos e considerados sábios, porque homens, porque velhos, porque brancos.

A discussão entre o governo e o Centrão atualmente é um rebu de homens, onde o presidente chega a dizer que a Ministra da Saúde não está na negociata porque ela é “sua ministra”, não do Brasil. Não, Senhor Presidente, por mais respeito que eu tenha a sua vida política, Nísia Trindade não é sua ministra, é ministra do Brasil, e suas qualidades engrandeceriam qualquer ministério da saúde no mundo! Em um sistema presidencialista, em princípio, todos os ministros são escolhas do presidente, o que não lhe aufere nenhuma propriedade sobre as pessoas que escolhe.

O Brasil necessita urgentemente usar estes anos de governo Lula para desarmar a sociedade brasileira, em todos os sentidos, precisa desconstruir a ideologia violenta, excludente, retrógrada, que teve sucesso e constituiu sujeitos em vastas parcelas da sociedade brasileira. Este governo tem a responsabilidade de construir uma nova maneira de relacionamento da população com o governo. É absolutamente urgente e necessário tomar atitudes que permitam às pessoas se identificarem com uma forma de vida vivível. Não basta o Minha Casa Minha Vida, não basta o Mais Médicos, não basta perdoar dívidas, urge dar sentido a isto tudo na vida das pessoas como uma forma de fazer política, de criar um ambiente político onde as pessoas se reconheçam como portadoras de direitos, que as inclua na esfera pública. Mas isto não se faz entregando o governo à direta fantasiada de Centrão, uma vez que, mesmo que tenha políticas públicas bem sucedidas, sabemos como este filme termina: será traído e se dará conta de que lhe restaram apenas os anéis mais ordinários.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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