Opinião
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12 de julho de 2023
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08:19

Do “Cão Sem Plumas” à Kombi da Volkswagen (por Maria Luiza Castilhos F. Cruz)

Maria Rita e Elis Regina apareceram cantando juntas por meio de inteligência artificial. (Divulgação/Volkswagen)
Maria Rita e Elis Regina apareceram cantando juntas por meio de inteligência artificial. (Divulgação/Volkswagen)

Maria Luiza Castilhos F. Cruz (*)

Uma amiga descreve sua autocritica após observar a ingenuidade com que consumiu inicialmente a propaganda de imagens e música carregadas de lembranças afetivas:

 “Minha infância em POA com vizinhos amigos de Elis, o sonho de papai de ter um Fusca (só conseguiu comprar um modelo 69 em 1978, e depois teve uma Kombi modelo 70 que comprou em 86)… tudo me fez ver o comercial como algo lindo. Agora leio as discussões e me sinto novamente atacada… Como a ditadura que corria solta a minha volta na Porto Alegre dos anos 60 e eu preocupada com os filmes da Sissi. Quero uma reparação para este entorpecimento que me fizeram viver… E que o comercial da Kombi reatualizou”. 

O exaustivo trabalho de construir memória em nosso país tem a antipática função de lembrar o que é negado, não dito, ou distorcido. Especialmente os que se reconhecem afetados pelo sistema repressor de 64, muitas vezes acusados de revanchistas. Uma espécie de “azeitona na empada”. Pois diante da espetacular propaganda do lançamento do carro elétrico da Volks, torna-se o chato que não vê nas maravilhas da tecnologia deep fake, ou na arte publicitária de conexões altamente emocionais entre passado e presente, o valor do sujeito humano e de sua história árdua pela cidadania. Ocorre talvez para estes, que a “dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. 

  Uma rápida consulta ao Youtube demonstra o quanto doutrinas “progressistas” e “empoderadoras”, em suas diversas versões científicas ou místicas, consideram rever o passado como cultivo de um comportamento retrógrado: é preciso “desapegar” para romper com o que nos prende; assim também o passado é obstáculo a inovação e o futuro um sinônimo de avanço tecnológico. Mitos estes, abalados na experiência da pandemia do COVID, diante da interrogação sobre o que é prioritário à sobrevivência da espécie humana. Culturas qualificadas como primitivas – povos originários e outros singulares-, trouxeram em seus saberes ancestrais a experiência de cultivo da vida através da diversidade e ética do solidário e do coletivo.  A pandemia, como experiência de desamparo e desproteção social, questionou o fracasso da crença no sujeito/indivíduo /empreendedor contemporâneo como protagonista dos avanços civilizatórios e humanitários.

Particularmente o aprendizado histórico-político dos horrores produzidos pela humanidade é de que as violências de estado se repetem quando são socialmente esquecidas, porque produzem tramas e traumas que requerem novos repertórios sociais e psíquicos: base sobre as quais as Clínicas do Testemunho, enquanto política de reparação psíquica do estado, criadas em 2013 e abruptamente encerradas em 2017 demonstraram-se efetivas e deveriam ser reativadas. O passado pois é fundamental à construção do  novo. Assim também é sabido que encontramo-nos na disputa por Verdade, Memória e Justiça no Brasil, engatinhando no resgate e reconstituição dos fatos e personagens que compuseram a história da Ditadura; impedidos ainda -ontem e hoje- de nominar e enterrar mortos, desaparecidos e heróis da resistência. Sequer podendo distinguir criminosos e inimigos da democracia. Enfim, enxergar nossas raízes, nós mesmos, em nossos laços sociais…!

Na propaganda recheada de símbolos de aspiração social e resistência, nas ambiguidades do paralelo entre passado e presente, emergem resíduos da mal contada história de 64, desconhecida não só das novas gerações como por muitos da época em questão, posto que o ocultamento e a despolitização dos conflitos foram estratégia que atravessou a frágil história de nossa democracia. Reconhecer a violência é uma questão atual, decisiva para mudança da matriz em vigor. Ironicamente devemos à extrema-direita que esteve recentemente no poder a oportunidade de encenar o passado, não só da ditadura de 64 como o da escravidão e do nazismo, renovado por um projeto de poder sem Estado, sem limites e ética pública.

  Reparação psíquica e memória social vinculam-se na proposta das Clínicas do Testemunho como práticas reflexivas de resgate de recordações na busca de sentido do passado para recriar o presente e então projetar o futuro. Precisamos então de políticas públicas de memória. No mínimo a Volkswagen nos faz mais um desserviço em relação à construção de memória, participação e responsabilidade social por um país menos violento.    

Então a “propaganda da Kombi”, não é uma novela em que a Volkswagen possa “apagar” ter financiado  crimes de lesa humanidade no Brasil e na Alemanha nazista. Em mais uma, das diversas formas como se faz uso político do passado, semelhante ao uso que a extrema-direita vem fazendo em relação a cooptação para atos de violência e doutrinas neofascistas, observa-se nela o método de retirar informações e impactos da cena original deslocando alguns elementos para criação de imaginários de pertencimento, visibilidade e importância histórica. Como se vê na versão de personagens como Hitler, Brilhante Ustra veiculados com outras características e conteúdos simbólicos que não lhe são inerentes, numa clara leitura despolitizadora, que nega a violência e como ela se constitui. Temos aí terreno fértil à livre imaginação e à falácia da livre-expressão para mentir a História.  Agregue-se aqui que fake News e deep-fake tem a mesma lógica de descompromisso com ética na publicidade.    

Há mais mistérios provocados nestes artifícios produtores de subjetividade que confundem Poder, Sujeito e História, que mereceriam profundidade de análise por nos remeter a negação da morte como fator do horror /desumanizador, o que não cabe neste texto.

  Penso no belo espetáculo do “Cão Sem Plumas” apresentado no início deste mês pela Companhia de dança da Débora Colker, que nos leva para dentro do poema de João Cabral de Melo Neto, que por sua vez nos leva para dentro do mangue e de seus laços no entorno. Transmissão que nos coloca onde temos de estar para ver o que está lá, – seja no ausente, complexo, ambíguo, incerto, doloroso ou parcial contexto de pessoas cujas vidas desconhecemos. Trata-se do que pode nos confundir, mas diferente da publicidade, nos leva a aproximação da humanidade que queremos construir. Pela palavra de João Cabral de Melo Neto:

“Na paisagem do rio 

difícil é saber 

onde começa o rio;

 onde a lama

 começa do rio; 

onde a terra 

começa da lama;

 onde o homem,

 onde a pele

 começa da lama; 

onde começa o homem 

naquele homem”.

(*) Filha de perseguido político da Ditadura de 64. Integrante do Coletivo Testemunho e Ação/Sigmund Freud Associação Psicanalítica

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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