Opinião
|
4 de julho de 2023
|
07:56

Contardo Calligaris na APPOA (Coluna da APPOA)

Contardo Calligaris (Foto: Rodrigo Cancela/CPFL Cultura)
Contardo Calligaris (Foto: Rodrigo Cancela/CPFL Cultura)

Alfredo Gil (*)

No dia 17 do mês passado, a Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) organizou um evento importante intitulado “Contardo Calligaris: memórias, história e leituras do livro O grupo e o mal [1]. Assistiu-se a um acontecimento intenso em emoção, várias lembranças e, sobretudo, por um imenso reconhecimento da parte de todos os que tiveram a ocasião de encontrá-lo como analista, colega ou amigo. Foi também certamente marcante para os mais jovens presentes que, mesmo sem terem tido o privilégio de conhecê-lo, poderão ainda descobrir suas elaborações, seus avanços teórico-clínicos, suas observações cotidianas cheias de nuances, seja em língua portuguesa, em francês, inglês ou italiano.

Contardo Calligaris é uma figura que, sobretudo no Brasil, dispensa apresentação. Seu público e leitores não se reduziam mais ao meio psicanalítico, pela simples razão de que há muito sua produção já havia “ultrapassado” a literatura especializada do meio psi. Por prova tem-se a publicação de dois romances, além da realização de uma peça de teatro e de uma série televisiva, sem contar suas crônicas semanais no jornal Folha de São Paulo. Que não seja necessário apresentá-lo no Brasil, não impede de lembrarmos sua repercussão no exterior. Podemos ler homenagens tocantes ao homem e intelectual por parte de colegas franceses, chilenos, belgas, todos reconhecendo o papel que teve nesses diferentes lugares na transmissão da psicanálise [2]. Nessas manifestações salienta-se muito a capacidade em conciliar clareza e rigor do homem de grande erudição e generosidade, com uma escuta autêntica à sua assistência, um pensamento livre e inovador. Um psicanalista que, através do seu exercício clínico – onde a singularidade de quem vinha consultar era atendida – escutava o espaço social no qual cada singularidade toma forma e do qual tenta por vezes se emancipar. Contardo “dava vida aos conceitos propondo modalidades de trabalho inovadoras” recorda Maria-Elena Sota, colega chilena numa das homenagens. 

Como disse, sabemos que seus interlocutores não se reduziam aos pares psicanalíticos, e isso muito antes de sua chegada ao Brasil. Em L’âge des lettres (2015) o eminente crítico literário, Antoine Compagnon, recorda a presença do seu amigo no seminário de Roland Barthes, nos anos 70, à época restrito aos doutorandos. O mesmo Antoine Compagnon twitou sua afeição e tristeza pela perda do amigo. 

Então, “memórias, história, e livro” foi um encontro de homenagem. O livro em questão não é outro que sua tese de doutorado defendida em uma universidade no sul da França no início dos anos 90, cuja publicação brasileira devemos aos psicanalistas Jurandir Freire Costa e Otavio Souza que nos deram a honra de suas presenças nesta ocasião. 

Assim, a publicação póstuma desta tese é em si um evento. E, devemos acrescentar, emocional e intelectualmente. Fomos vários a tentar botar a mão neste imenso e rigoroso trabalho de tese, desde a sua defesa. Em vão. Um colega presente conta que durante a redação de sua própria tese que tratou da perversão, objeto central do livro de Contardo, teve que se contentar com fragmentos aqui e ali em sua pesquisa. Em minhas tentativas, Roland Gori, que foi o orientador da tese, respondeu que sua cópia deveria estar no fundo do porão de sua casa, e que não poderia fazer nada por mim. Mais tarde, Jean Pierre Lebrun, que publica em 2007 um livro intitulado La perversion ordinaire, no qual cita a tese, disse que, se um dia eu estivesse de passagem pela Bélgica, emprestaria o calhamaço; acrescentou que desejava publicá-la, mas que Contardo ainda tinha reservas para tanto.

O grupo e o mal: estudo sobre a perversão social, título do livro, é também um evento por pelo menos duas outras razões: inicialmente, pelo prazer de, nesse livro, reencontrarmos Contardo, depois de ter nos deixado, um prazer verdadeiramente póstumo, ou seja, que nasce por último. Segundo, o de poder termos acesso a este seu texto, sobretudo para os psicanalistas, visto que há muitos anos nem a fala nem a escrita de Contardo tinha compromisso com a transmissão da psicanálise propriamente dita. Há anos Contardo não estava mais preocupado com a transmissão da psicanálise stricto sensu. Ora, ler essa tese é também reencontrar o acadêmico, no sentido nobre do termo, o Contardo pesquisador, que busca e enxuga seu objeto de trabalho e amplia a reflexão. Com essa publicação temos pano para muitas mangas.

Neste encontro da APPOA, predominaram “memórias” e “hisória” mais do que o “livro. Este, numa primeira leitura, temos que reconhecer, é denso. Os conceitos chaves que guiam suas hipóteses – eu ideal, ideal do eu, narcisismo e masoquismo – visando o campo da perversão, são amplamente trabalhados na literatura psicanalítica. Porém, apesar da clareza que o caracteriza, retomando metodicamente suas elaborações num working in progress rigoroso ao longo da redação, Contardo aborda seu objeto de pesquisa de um modo subversivo e inusitado, que exige do leitor a suspensão do tratamento do tema tal qual, em geral, ele é teorizado.  

Na leitura do primeiro capítulo, intitulado “Trevas”, pode-se apreciar, não sem mal-estar, seu talento inovador, exigindo do leitor, em contraponto, uma virada de perspectiva. A matéria bruta para desenvolver suas hipóteses: “os carrascos nazistas”, em particular três personagens principais na organização e realização do extermínio: Rudolf Hoess, Franz Stangl e Adolf Eichmann. De minha parte, o mal-estar deve-se ao modo como ao longo deste capítulo Contardo desfaz nossa representação dos carrascos nazistas ao afirmar que estes não se tratavam de pessoas cruéis e sádicas, que não tiravam seu prazer com a morte e sofrimento que causavam. Extremamente documentado, o estudo nos obriga, de uma certa maneira, a humanizar a representação do carrasco-monstro, levando ao extremo, por esta via, a máxima de Hannah Arendt sobre a “banalização do mal”. Ou seja, banalizar o mal é inscrevê-lo em nosso quotidiano sem que seja percebido como algo monstruoso. Mais ainda, e em outros termos, Contardo tenta responder, desde a perspectiva psicanalítica, a questão de Primo Levi em É isso um homem ? “Como é que, sem raiva, pode-se bater numa criatura humana?” Postula assim também algo difícil de suportar e compreender: “há uma crueldade sem ódio”. Daí uma afirmação capital relativa à responsabilidade de cada um sobre seus atos de modo geral e destes carrascos especificamente devido à separação que Contardo opera entre ato – criminal no caso – e lugar subjetivo desde onde executavam o crime: “eles matavam, mas estavam em outro lugar”, “os assassinos não estavam em seus atos, se não tinham – por assim dizer – a cabeça ali, onde ela estaria?” Para a resposta, o leitor tem que seguir o percurso minucioso do autor em suas 400 páginas nas quais acompanhamos seu desenvolvimento metapsicológico, seguido de seu trabalho clínico (numa época em que vivia em Paris) culminado com o retorno ao social, ou seja, às trevas nazistas.

Se em sua tese tratando da perversão, acompanhamos um desdobramento subversivo que podemos nomear Calligariano, aqui também lembramos que essa mesma capacidade em “dar vida aos conceitos” psicanalíticos, pode ser vista quando ele aborda o campo das psicoses. Existe um conjunto de textos instigantes, entre 1985 e 1993, nos quais ele renova a leitura lacaniana das psicoses. Sua interpretação, amplamente retomada na França por colegas de diferentes grupos psicanalíticos, escapava ao dogmatismo vigente relativo a esta estrutura clínica.   

À psicose devo encontros importantes que fiz na minha vida em diferentes lugares de tratamento psiquiátrico nos últimos 35 anos. Não tinha 20 anos e a loucura já tinha me aspirado para a Clínica Pinel de Porto Alegre. Não a minha loucura exatamente, mas a dos pacientes internados neste local, onde então eu trabalhava como atendente de enfermagem. Aí pela primeira vez cruzei com o Contardo, antes de encontrá-lo regularmente na Av. Eng. Alfredo Corrêa Daudt onde clinicava. Uma colega e amiga psiquiatra me informara, nesta ocasião, da vinda de um “psicanalista francês” para “conversar” com um de seus pacientes internados na Clínica Pinel, conversa que nessa tradição chama-se apresentação de doentes. O nome de Lacan, eu tinha ouvido falar vagamente. Nesta clínica a tradição era anglo-saxônica, com W. Bion e M. Klein, em boa medida pela perspectiva de H. Segal; por conseguinte, a prática de apresentações de doentes era completamente desconhecida. Por outro lado, este tipo de intervenção conhecido no meio lacaniano não era exercido na cidade. Ainda gravada na memória, a cena daquele dia era inédita. Ela impressionava a assistência presente, em particular os colegas da Pinel. Porém o quadro é simples: tinha-se o “psicanalista francês” colado fisicamente e levando uma “conversa” respeitosa e interessada com a fala do paciente.

Neste encontro, por fim, Jurandir Freire Costa afirmou o legado de Contardo dizendo que, provavelmente daqui uns trinta anos no máximo, as pessoas que tiveram a oportunidade de encontrá-lo já não estarão mais aqui. Mas que ele, Contardo, através de suas obras, continuará. 

Notas:

[1] https://www.youtube.com/live/ZBPKtYCWwP4?feature=share

[2] https://www.freud-lacan.com/index.php?option=com_content&view=article&id=384 

 https://www.espace-analytique.be/institution/hommages

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]  

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora