Opinião
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11 de julho de 2023
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14:17

Como herdar uma coragem? (Coluna da APPOA)

Gueto de Varsóvia transformou-se num símbolo universal de resistência (Foto: Pixabay)
Gueto de Varsóvia transformou-se num símbolo universal de resistência (Foto: Pixabay)

Lucia Serrano Pereira (*)

Georges Didi-Huberman lança em seu livro uma pergunta desafiadora, nada óbvia, que abre muitas outras. Como assim, se herda, então, uma coragem? Por que colocar a coragem em relação a um termo já tão carregado de cruzamentos e sentidos? Que relação pode haver entre coragem e transmissão ( uma vez que falar de herança já implica, de alguma forma, uma transmissão)? Como é mesmo que herdar pode ter a ver com uma operatória, uma vez que a pergunta alude a um “como fazer”? E, por fim, por que “uma” coragem? Como se a coragem fosse um elemento discreto, um a um…

Georges Didi-Huberman começa seu texto a partir de um acontecimento forte e extremo da história. A revolta armada dos civis do gueto de Varsóvia, em 1943, os judeus que estavam destinados ao extermínio e que mesmo sem qualquer esperança de sobrevivência se insurgem e combatem a SS até o fim. Foi organizada uma resistência que surpreende a estratégia dos alemães que invadiram o gueto, rompendo a ordem prevista, desordenando, mesmo que fragmentariamente, o programa nazista. O levante no gueto de Varsóvia ficou como um acontecimento paradigmático do que Didi-Huberman vai situar como uprising – revolta – levante, em sua fala realizada no Wallraf Museu em Colônia, , há cinco anos atrás intitulada – How to inherit the courage of others?. Foram exterminados, no gueto. Mas conseguiram produzir escritos, testemunhos da vida ali durante aqueles anos, material que foi enterrado e resgatado por sobreviventes após a guerra e que hoje temos publicados.

Revolta, onde o crucial, destaca a propósito do levante,  é a transformação de cada partícula de dor em uprising; Outro contexto,  “sublevação” talvez seja o melhor termo, lembrando da exposição da qual foi curador e que correu mundo há alguns anos, e que aqui no Brasil se chamou Levantes; o destaque era para o gesto de se sublevar via a arte, expressão forte do que é nossa condição subjetiva ( e no laço com os outros) de tomar posição, de implicação com nosso tempo, contexto e desejo. De conseguir fazer a parcialidade do gesto mesmo quando a totalização apareça como consumada ( o que importa em cada situação, achando as fendas, as brechas). Didi-Huberman avança, na proposição que também foi a de Hanna Arendt, de que o mal está, para além do nazismo, na condição humana.

Nesse sentido essa “uma” coragem não é propriamente heróica, do heroísmo do senso comum. Ela é bem mais do lado de podermos reconhecê-lo, onde ele se manifesta; herança como coragem frente ao mal, como possibilidade de fazer seu reconhecimento. Articulá-lo discursivamente para poder fazer seu enfrentamento, diferente do que ficarmos envolvidos por isso como um certo murmúrio difuso, que pressentimos em torno de nós mas que é intangível, invisível como um mal-estar diluído em uma cortina de fumaça. E assim a relação com a herança se amplia; a coragem do encontro com as contradições, as alienações que estão também nas coisas que herdamos.

Uma herança nunca é um “bem tranquilo”. Herdamos não só o que é testamentário. Aquilo que se herda não é, muitas vezes, nem nomeável, não se pode apreender de forma linear, unívoca. Herdamos esquecimentos, os não-ditos misturados com as lembranças, e “muitas vezes não sabemos quem foram os nossos doadores nem de que são feitos nossos tesouros.” Nos encontramos aqui com o que se encontra no inconsciente, no não-saber, mas que transporta a possibilidade de constituir coragem para além do que se sabe. Compromisso com algo da verdade que compõe a nossa subjetividade, nossa história. O herdeiro vai ter, nesse sentido, uma responsabilidade para com a temporalidade que é aberta por essa herança.

Lembro um dizer de Contardo Calligaris em um de seus seminários sobre a clínica psicanalítica: uma análise não dá coragem para ninguém. Era um pouco enigmático, mas acho que deciframos bem naquele momento. Não dar coragem queria dizer que a experiência da análise não ia aportar coragem como uma oferta, um presente que vem do outro. Assim como também não “dá” desejo para alguém. Mas cria possibilidade, espaço para que a coragem ou o desejo que ali se encontra possam abrir caminho. O que pode fazer muita diferença na vida.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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