Opinião
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25 de julho de 2023
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08:59

A morte das árvores como política urbana de Porto Alegre (por Jacques Alfonsin)

Parque Harmonia, em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21
Parque Harmonia, em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

Jacques Távora Alfonsin (*)

 Porto Alegre está padecendo de um ciclone tão ou mais predatório e danoso à cidade do que aqueles que, neste mês de julho, assolaram várias regiões do interior do Estado. Assim o presidente da AGAPAN, Heverton Lacerda, afirma em artigo publicado na Zero Hora de 20 deste julho, que contesta convincentemente outro, do Secretário do Meio Ambiente de Porto Alegre, Germano Bremm, publicado no mesmo dia e página, ambos tratando da profunda mudança que as obras em execução no Parque Harmonia estão provocando ali sobre a natureza e o meio ambiente.

  Essa obra integra parte de um debate que Porto Alegre agora faz sobre a reforma do seu Plano Diretor, cuja condução vem sendo duramente criticada por parte de movimentos populares e pessoas jurídicas de defesa de direitos mais diretamente ligados à vida, dependentes de ambiente sadio como, entre outros, a própria AGAPAN, o INGÁ, o AtuaPoa, o CDES, a Acesso Cidadania e Direitos Humanos, estão fazendo. A reforma está sendo conduzida sob uma insignificante abertura e facilitação da participação popular, em sua discussão e deliberação, desrespeita o princípio democrático próprio da nossa Constituição Federal, sobre política urbana (arts. 182 e 183), o Estatuto da Cidade disciplina (art. 43) , e a própria Lei orgânica do Município também garante (arts, 209, inciso VI).

  Aproveitando o período em que o mundo todo não prestou atenção em outra coisa que não a de se defender da pandemia de Covid, o CMDUA passou a receber pedidos de empresas interessadas em antecipar a elaboração de leis que, se não infringiam total, já modificavam parcialmente o Plano vigente, tais como Programa de Reabilitação do Centro Histórico (Lei Complementar 930/2020) e Programa de Regeneração Urbana do 4º Distrito (Lei 960/2022)

  A direção dos trabalhos, a cargo do secretário referido Secretário do meio ambiente do município que já exerce tal função por duas gestões administrativas, conta com a parceria explícita dos votos, é claro, de quem ali representa o Município, (9 votos), mas também com a da representação empresarial (Sinduscon e Asbea 2 votos) acompanhadas geralmente por três representantes de regiões da cidade (RGP3, RGP6 e RGP8), em números que garantem, sempre maioria folgada e desejada pela direção. São raríssimos os casos em que, colocado em votação qualquer projeto empresarial, seja rejeitado ou, quando menos, adequado à uma boa ordem urbana. Contando com essa vantagem numérica, a direção do CMDUA teme sua possível mudança. Por isso, prorrogou por conta própria o mandato de todos os seus integrantes desobedecendo assim, não só a lei que rege o dito Conselho (artigo 40 da LC 434/99), como o seu regimento interno.

  Trata-se, portanto, de uma verdadeira farsa daquilo que a gravidade das questões relacionadas com a vida das cidades e das suas cidadãs e cidadãos comporta. Até as raízes idênticas dessas palavras convence disso. Uma trágica amostra desse fato está sendo objeto agora de vigorosa resiliência popular – o assassinato massivo das árvores que compunham o parque Harmonia, em área do todo maior Maurício Sirotsky Sobrinho. Ali está se verificando uma das mais violentas agressões à natureza, fauna e flora que Porto Alegre já assistiu. O pior é que o MP não viu nenhum inconveniente na continuidade das obras predatórias à natureza e ao meio ambiente que lá estão ocorrendo como a ZH do dia 17 deste julho noticiou.

   O Ingá, um Instituto conhecido por sua defesa da natureza e do meio ambiente que, desde o início daquele arboricídio tem-se posicionado em sentido mais do que suficientemente baseado em lei, já no dia 20 deste mesmo julho, requereu pronunciamento da Promotoria de justiça do meio ambiente, agora com o reforço de vasta prova documental e fotográfica.

  É de se esperar que algum efeito isso possa obrigar a política urbana do Município não continuar matando as árvores, não só as do Parque Harmonia como a de toda a cidade, sujeita ao enquadramento de responsabilidades civis e penais. Pela do crime que resulta em perigo comum, parece inquestionável, pois do jeito que as obras estão se fazendo por ali, todo o meio ambiente da cidade está sendo afetado em matéria para a qual, como e sabe, não existem fronteiras.

  Pode-se falar, por isso, em direitos da natureza, em direito à vida das árvores? A política urbana da Porto Alegre de agora e a concessionária de execução das obras no Parque Humaitá responsáveis pelo assassinato massivo daquelas árvores, vão ironizar.  É que talvez desconheçam o quanto a terra como sujeito de direito, o quanto os direitos da natureza começam a ser reconhecidos e empoderados legalmente. Com poucas diferenças, já  vigem em três Constituições Latino – Americanas, da Venezuela (1999), Bolívia (2009) e Equador (2008), e em 6 (seis) cidades brasileiras, Bonito (2017) e Paudalho (2018), ambas de Pernambuco; Florianópolis (2019), Santa Catarina; Serro (2022), Minas Gerais; e, neste ano de 2023, no Município de Guajará Mirim, em Rondônia e Cáceres, no Mato Grosso. O Ministério Público, qualquer cidadã ou cidadão dessas cidades pode ajuizar ação judicial que entenda cabível, em nome da terra ou do meio ambiente contra qualquer ameaça ou violação de direito que esses bens de vida estejam sofrendo. Guajará Mirim até identificou em lei um rio (Laje), como titular desse direito.

   Num mundo rigorosamente antropocêntrico, como aquele que ignora quaisquer outras vidas que não as dos seres humanos, isso parece um absurdo, mas é um mundo biocêntrico que vem crescendo aí, em sentido contrário a essa limitada concepção de vida. Porto Alegre, então, em matéria de natureza e meio ambiente, está atrasada por ainda não se ter aliado a uma tão saudável tendência mundial. Mesmo que a história demonstre o fato de motivos e valores “garantidos” pela lei (os relacionados com os direitos sociais e ambientais servem de exemplo) não conseguirem vencer, de fato, o ataque violento da cobiça e da ganância do capital seguirem depredando a natureza e poluindo o meio ambiente, isso é um motivo a mais para serem empoderadas as iniciativas que podem vencer esse mal, dentro ou fora do Poder Público.

  Não sem razão, Francesco Carnelutti (1879-1965), um famoso advogado jurista italiano, que já defendia o povo pobre gratuitamente numa época em que nem se sonhava com Defensoria Pública, encontro justamente na árvore a mais bela definição de direito, que pode ser resumida assim: a terra é a economia, o caule é a lei, os frutos são a justiça, mas a semente é a moral.

   Observe-se a distância abissal que a política urbana atual de Porto Alegre guarda, mais do que da sua inconstitucionalidade, dessa concepção de direito e justiça.

(*) Procurador aposentado do Estado do Rio Grande do Sul e membro fundador da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e RENAP

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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