Opinião
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5 de junho de 2023
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13:01

Savater: crônica de uma moral antiética (por Anisio Pires)

Fernando Savater (Fronteiras do Pensamento/Divulgação)
Fernando Savater (Fronteiras do Pensamento/Divulgação)

Por Anisio Pires (*)

Trabalhar em livrarias pode ser uma das formas menos sofríveis de exploração, dada a singular “alienação positiva” que ocorre estando rodeado por livros. Vivenciamos essa experiência no Uruguai entre os anos 2003 y 2009 quando fomos livreiros. Aprendemos também que a venda comercial de livros implica, às vezes, oferecer produtos de duvidoso benefício para o crescimento espiritual. 

Lutando por um mundo à altura de nossa espécie, cada vez que vendíamos algum livro do famoso filosofo espanhol Fernando Savater, entre outros autores, acreditávamos estar agregando um grão a nobre ideia de “Potenciar a razão”, título de uma de suas obras. Se essa razão fosse dotada também de sensibilidade mediante reflexões éticas, facilitaria a possibilidade de corrigir muitas injustiças. No ano 2005 (guardem a data!), “Ética para Amador” (1991) de Savater, seguia sendo um sucesso de vendas. Em seu prólogo, o autor aclara não ser um manual de ética para estudantes, mas que qualquer educação que se preze deveria promover “a reflexão moral”. O livro dirigido a seu filho Amador é apresentado como “pessoal e subjetivo”, desde a relação universal que teria tem um pai com seu filho. Acrescenta ainda que, longe de pretender forjar cidadãos “bem pensantes” ou “mal pensantes”, o que o livro pretende é “estimular o desenvolvimento de livres-pensadores”. 

Meses atrás, um artigo de Julio César Guanche no site rebelión.org nos permitiu conhecer um intelectual, também espanhol, falecido em 2021 chamado Alfonso Sastre. O interesse gerado nos levou a sua obra “A batalha dos intelectuais”. Revisando a edição de Clacso, prologada pelo argentino Atilio Borón, lemos com certa surpresa o que já muitos sabiam. Savater e outros intelectuais mencionados por Sastre, tinha deixado para trás seu passado de esquerda para se encontrar hoje “sorridente, nas filas da direita mais patriótica”. De direita? Esse demandado filosofo cujos textos convidavam a pensar? Custou acreditar.

Quis a vida que poucas semanas depois se apresentasse uma ocasião para revelar a verdade. O Presidente da Colômbia Gustavo Petro esteve de visita à Espanha em maio de 2023 e, repentinamente, como se tivesse sido estimulado a se manifestar, Savater dirigiu críticas contra o ilustre visitante. Suas declarações, replicadas imediatamente pelos meios da direita espanhola, foram editorialmente catalogadas de “demolidoras”. 

Sem deixar dúvidas sobre suas preferências ideológicas, Savater decretou que “a sorte” da Colômbia tinha acabado ao eleger seu “primeiro presidente de esquerda”. Desacreditando-o politicamente, acusou Petro de “avariado rebelde institucional”, pretendendo ainda humilhá-lo intelectualmente sob a acusação de ser em vários assuntos “provocativamente ignorante”. Savater lamentou inclusive que Petro fosse tão incapaz em comparação “com a quantidade de colombianos de talento que a gente tem conhecido”. 

 Sendo a Espanha o segundo destino da migração colombiana depois dos EUA, era de se supor, de maneira razoável, que alguém informado como Savater estivesse a par da tragédia de morte, violência e exclusão que tornou a Colômbia o país com o maior deslocamento interno de pessoas do mundo. FARC, ELN, guerrilha e conflito armado são termos associados à Colômbia, mas também Pablo Escobar, Narcotráfico, Paramilitarismo e Violência. É de se supor que um pai desejoso de que seu filho fosse um livre pensador, também estivesse preocupado pelos constantes carregamentos de droga que saindo desde Colômbia inundam o “mercado” espanhol, destruindo a vida de milhares de jovens. Savater sabe que os responsáveis por toda essa “má sorte” têm sido os governos de direita, os únicos que controlaram o poder na Colômbia até a chegada de Petro. 

Sem precipitação, quisemos ver nos ataques de Savater contra o Presidente Petro, certa influência desse ambiente de retrocesso e obscurantismo que atravessa a Espanha e toda a Europa. Buscamos então outros contextos com julgamentos mais equilibrados e objetivos do filósofo. Não tivemos “sorte”. No ano 2018, enquanto a Colômbia seguia dirigida pela narcopolítica, com informes da ONU que confirmavam o aumento nos volumes de cocaína que saiam de seu território, Savater já tinha Gustavo Petro em suas “reflexões”. Embora os informes de DDHH denunciassem a aterradora situação da Colômbia, Savater atacava as propostas políticas de Petro por considerá-las “um desastre”, enquanto guardava total silêncio frente à genocida realidade colombiana. Uma rara e original maneira de potenciar a razão. 

 Procurando mais atrás, 2012, encontramos outra curiosidade. O ex-presidente colombiano Álvaro Uribe Vélez, amplamente denunciado por seus vínculos com grupos paramilitares, narcotráfico e outros horrores, incluiu Savater numas palavras de agradecimento: “Pensadores como Fernando Savater e Edurne Uriarte e programas políticos como o do Partido Popular inspiraram nossa política de Seguridade Democrática e nos ratificaram que, quando o terrorismo é apaziguado com concessões, agiganta sua capacidade destruidora. ”

O sinistro Álvaro Uribe elogiando o especialista em ética? Antes de leva-los à origem desta “afinidade eletiva”, precisamos apresentar alguns dados da realidade colombiana.  

 Segundo o informe apresentado no início de 2021 pela Jurisdição Especial para a Paz da Colômbia (JEP), nas duas primeiras décadas do presente século, pelo menos 6.402 jovens foram executados extrajudicialmente. Destes crimes, 78% (quase 5 mil) ocorreram entre os anos 2002-2008 do governo de Álvaro Uribe (2002-2010). As mortes ficavam de certa forma ocultas, enquanto os comunicados do exército divulgavam cifras de “guerrilheiros mortos em combate”. Foi então, graças às denúncias das mães e familiares desses rapazes, que no ano 2008 aparece a verdade. A chamada política de “Seguridade Democrática” de Uribe, que em seu elogio a Savater reivindicava não dar “concessões” aos “terroristas”, precisava mostrar resultados. Como se fosse uma fábrica, a gerência exigia produtividade (mais mortos), oferecendo “incentivos” na forma de prêmios e ascensos na carreira militar. Nascem assim os “falsos positivos”, jovens assassinados, sobretudo camponeses, que logo eram vestidos como guerrilheiros. A essas matanças só faltou uma organização em escala industrial para se parecerem com a “solução final” dos nazistas. 

 Na matemática do horror, a média de jovens assassinados durante os 6 anos “mais produtivos” da presidência de Uribe rondava os 832 ao ano. Isto quer dizer que até 2005, 2.500 jovens tiveram arrancada a oportunidade de sonhar e de se tornarem livres pensadores como queria Savater para seu filho em “Ética para Amador”.  O que tem de especial o ano 2005? Cinismo e perversidade. Nesse ano Savater visitou a Colômbia, não para se solidarizar com as famílias que sofriam, mas para dar legitimidade “intelectual” ao governo responsável por esses crimes. Ofereceu várias conferências, incluída a mais estelar, promovida e apresentada pelo mesmíssimo Álvaro Uribe. Ou seja, resolvemos duas incógnitas: o agradecimento de Uribe ao filósofo em 2012 e o lamento de Savater ao atacar Petro porque este não era um colombiano de “talento” como outros que tinha conhecido.

 Antes de sua conferência, na presença do talentoso Uribe, Savater conseguiu se auto hipnotizar, abstraindo-se do genocídio levado adiante pela política da “Seguridade Democrática”. A nova ideologia de quem fora anarquista, bloqueava agora epistemologicamente seu livre arbítrio, impedindo-lhe de investigar, por elementar sensibilidade humana, o que se passava de verdade na Colômbia. Porém, o horror estava tão presente no ambiente que mesmo se negando a vê-lo, para não apontar a seus anfitriões, animou-se a dizer que a Colômbia buscava “quase com desespero, fórmulas eficazes para se encontrar com a democracia, a educação e a ética”. 

 Superada essa recaída retórica na sensibilidade, Savater voltou ao pedantismo das belas palavras desconectadas da realidade, aplicando a máxima hipócrita: “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Como querendo lembrar ao público sua paixão em promover o pensamento, aclarou que a ética é “refletir se aquilo que estamos fazendo é humanista”. 

Dar respaldo ao governo de um criminoso, sem dúvida, era a “quinta-essência do humano” e, por isso, Savater aceitou sorridentemente que Uribe fizesse sua apresentação na “Tertúlia com Fernando Savater” do dia 28 de abril de 2005 (Bogotá – Cundinamarca). 

O anfitrião começou com um “Muito obrigado, mestre, nos honra muito com sus visita”, para logo informar ao filósofo que a Colômbia tinha passado “do período das garantias retóricas ao período das garantias efetivas, graças à Seguridade Democrática”. O fechamento não poderia ter sido melhor. Mostrando ao grande pensador que estava na presença de um presidente de “enorme generosidade”, Uribe falou do futuro que nunca chegou: “No momento em que cessem os atos de violência, o Governo aceita que foram criadas as condições mínimas para poder avançar num processo de diálogo”. Embora os diálogos para a verdadeira pacificação da Colômbia somente estejam ocorrendo agora com Gustavo Petro, quase vinte anos depois, Savater considera que a sorte da Colômbia acabou. Mais miserável não poderia ser.

O encerramento da apresentação de Uribe deve ter levado ao êxtase da emoção e da incredulidade o filósofo espanhol. O grande chefe paramilitar, num ato de magnânima humildade, concluiu suas palavras dizendo: “não lhe digo mais, mestre, porque viemos escutar o senhor”.

O filósofo alemão Jürgen Habermas, ao confessar seu desgosto pela negativa de Martin Heidegger em fazer uma autocrítica de sua adesão ao nazismo, colocou esta pergunta: “A principal tarefa dos que se dedicam ao ofício do pensamento não é lançar luz sobre os crimes cometidos no passado e manter desperta a consciência sobre eles? ” 

Savater está fora dessa reflexão. É um réu, reincidente, na estupidez do mal.    

(*) Anisio Pires. Sociólogo venezuelano pela UFRGS. Professor da Universidade Bolivariana da Venezuela (UBV) e articulista de opinião sobre temas de geopolítica, política e comunicação.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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