Opinião
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30 de maio de 2023
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07:11

O cansaço e o sopro de vida da noite (Coluna da APPOA)

Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal
Foto: Gilson Mafacioli/Arquivo pessoal

Volnei Antonio Dassoler (*)

Um pequeno diálogo de conteúdo trivial intercalado com demandas e informações de natureza médica ocorrido por ocasião de uma consulta deflagrou que algumas questões que costumam aparecer em encontros sociais e fóruns profissionais ganhassem forma de narrativa. A depender da médica/o e da/o paciente, uma consulta pode ser um encontro breve guiado pelo interesse investigativo sobre uma determinada queixa, mediado ou não por subsídios como exames clínicos ou de imagem, e que culmina com a prescrição terapêutica. Em alguns casos, seja pela cordialidade de uma das partes, da outra ou de ambas, seja pelo clima de desconforto que a circunstância instala, um diálogo paralelo com conteúdos aleatórios se desenvolve entre os protagonistas da cena clínica. Na oportunidade que menciono ao iniciar este texto, o profissional contou que, fazia pouco tempo, tinha ficado quatro dias sem seu aparelho de celular, pois este havia estragado. Mencionou que vinha se sentindo cansado havia muitos anos ainda que desfrutasse de férias regulares e, numa espécie de confissão, acrescentou que o período sem o aparelho celular teria sido um dos melhores vividos por ele nos últimos anos, destacando o sossego conquistado na hora de dormir e no despertar matinal. Aberto o fluxo dialógico, seguiu-se um revezamento argumentativo sobre os prós e contras da (oni)presença da tecnologia na vida moderna. A reconhecida heterogeneidade de elementos na topologia da realidade virtual nos precaveu de saída de esperarmos qualquer desfecho, poupando-nos da lógica superficial e ingênua de opor o ser humano à máquina. Por fim, perguntei: e o que aconteceu no quinto dia? 

A insistência de uma palavra/sentença na rede discursiva assume seu valor interpretativo de uma determinada cultura a partir de um recorte espaço-temporal específico. Presentemente, o vocábulo “cansada/o” ou, melhor dizendo, a sentença “estou cansada/o”, distanciou-se, nas últimas décadas, da concepção de esgotamento físico entendido como consequência da intensidade e força exigidas em uma determinada atividade. Ainda que também faça referência a uma repercussão na disposição física, a expressão “estou cansado/a” tem sido usada para descrever e traduzir qualitativamente a dimensão psíquica de exaustão, revelando um sujeito impaciente e acuado frente à imposição das demandas da realidade, vividas como invasivas e excessivas por subtraírem (o) tempo e desmontarem a ilusão de autonomia. Se a ordem do discurso é afetada, seus efeitos se coletivizam e se subjetivam. Por ser impalpável, o descanso nunca se mostra suficiente, experimentando-se uma sensação de colapso iminente no corpo, na interação humana e nas demais formas de vida social, incluindo o mundo do trabalho. 

Nesta lógica, o fato de dizer-se cansado desvela um sujeito atordoado diante de exigências de toda ordem, enleado por uma trama do destino mas sem deixar de reconhecer, ele próprio, a sua participação no impasse do modus operandi vivido, que o seduz na mesma medida em que o consome. Neste estado de cansaço, a reação frequentemente ensaiada e que passa pela definição ou organização de prioridades tem efeitos limitados, pouco conseguindo modificar a repetição monótona e passiva na qual o sujeito se vê capturado. Sentido como um fardo mais do que como uma promessa, cada dia carrega em si um ar de tédio e de ameaça. Neste cenário, a possibilidade de se estar a sós e livre com os próprios pensamentos se torna um evento raro.

Tal como um oásis que impõe um rasgo na superfície do deserto, a noite surge como uma metáfora viável do movimento subversivo e necessário para (se) contrapor ao tédio, ao cansaço e à sensação de jogo perdido. Neste mundo de indivíduos interpelados pelo peso da exaustão que recai sobre o sujeito massificado, o silêncio e a penumbra da noite que acompanham o progressivo desligamento da realidade assumem caráter de resistência ao impor uma descontinuidade na volúpia invasiva da realidade concreta e iluminada. 

Sonhar, fantasiar e devanear são verbos/atos que abrem a potência da imaginação e autorizam uma espécie de licença poética no exercício do pensamento. Com isso e a partir desse momento, qualquer um, sem ser poeta, alcança um relativo exílio das críticas do próprio Eu e das exigências do mundo, deixando-se guiar pela gramática do desejo que, mais livre, desafia as fronteiras entre fantasia e realidade. Orientados pela suspensão provisória das coordenadas do tempo e do espaço, escapamos do presente e viajamos ao passado e, com isso, evitamos a corrosão irreparável das lembranças; vamos ao futuro e inventamos sentidos para a promessa incerta do amanhecer. Embalados por trilhas sonoras feitas por nós e para nós, suspendemos a materialidade do corpo, choramos perdas, realizamos encontros impossíveis, dançamos sozinhos, buscamos sons e cheiros extraviados nos labirintos da história, elaboramos réplicas para aquelas situações que nos deixaram paralisados e emudecidos. Alguns olham para o espaço buscando ver o azul do céu e o brilho das estrelas; outros preferem a textura palpável da natureza com seus cheiros e cores; outros escolhem a diversidade e o mistério das vidas ocultas na profundidade do mar. Nada acontece fora do mundo em que vivemos e do qual fazemos parte. É atento ao próprio horizonte da sua vida que cada sujeito deve fazer intervir a função de corte na experiência subjetiva do cansaço, ato subversivo de recuperação e reafirmação da singularidade – na versão condensada de veneno e remédio – como contraponto ao anonimato da massificação.

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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