Opinião
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16 de maio de 2023
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07:00

A vergonha (Coluna da APPOA)

Reprodução
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Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

O livro de Annie Ernaux, La honte (A vergonha), editado pela Galimard em 1997, na França, foi recentemente publicado no Brasil pela editora Fósforo (2022) com tradução de Marília Garcia. Trata-se de uma obra arrebatadora tanto para os leitores versados nos textos da autora, quanto para aqueles que começam a se descobrir através dos efeitos de sua escrita. 

Apesar de sua literatura não se deixar capturar por nenhum tipo de classificação ou estilo, pode-se dizer que Ernaux ficou reconhecida como expoente de uma espécie de junção entre o romance, o ensaio e a autobiografia ficcional. A partir de fragmentos de sua memória e das tentativas de compartilhar sua intimidade através de detalhes do cotidiano da família, da escola, do bairro ou das convenções sociais de sua época, somos convidados, também, a ampliar o nosso pensar face a uma análise crítica da política, das diferenças de classe, das relações de poder, da cultura e da sociedade

Com uma linguagem direta, a autora parece encontrar a forma e as palavras certas para nos tocar. A vergonha, assim como seus outros livros, é um exemplo disso. Lendo-a, lembrei do ensinamento de Freud de que os psicanalistas têm muito a aprender com os escritores acerca dos dilemas da alma, pois no livro de Ernaux estamos diante de uma obra capaz de interrogar os fantasmas de cada um. Quem nunca sentiu no corpo os efeitos que a vergonha causou? Sabemos o quanto a coragem nos escapa quando hesitamos em falar, seja pelo receio do julgamento dos outros, seja pelas exigências superegóicas e suas derivações de culpa.

Ao propor a cada analisante dizer o que lhe vem à cabeça, Freud inaugurou uma ética que possibilita ao sujeito falar de suas vergonhas sem ser julgado. Lacan, no Seminário O avesso da psicanálise, na lição de 17 de junho de 1970, já chamava a atenção para o fato de termos ficado calados em relação a esse tema, convocando-nos para retomar essa discussão. Ao mesmo tempo em que ele vai dizer “morrer de vergonha é um efeito raramente obtido”, o psicanalista lança o aforismo enigmático “morrer de vergonha é o único afeto da morte que merece – que merece o quê? – que a merece”. Se de um lado, dificilmente alguém morre de vergonha, de outro, é possível supor o quanto ela flerta com a morte. Em última instância, para Lacan, a vergonha pode ser vergonha de viver. Ernaux sabe disso, pois teve a sensibilidade de colocar palavras naquilo que insiste em silenciar.  

No transcorrer da leitura de A vergonha, constatamos se tratar de um afeto que não se limita ao sentimento ou a um simples pensamento, na verdade, ela pode se incrustar no sujeito como modo de vida. Como diz Ernaux, estamos diante de algo de difícil compreensão, ao mesmo tempo em que ela possui a propriedade de surgir num determinado instante –  quando você não se sente bem com os outros, especialmente, ao ser interpelado por seus olhares invasivos – a vergonha não se limita ao instante de senti-la. Portanto, seu impacto pode ser atemporal e direcionar a vida do envergonhado ao longo de sua trajetória, sobretudo quando ele sente vergonha do que supostamente lhe falta diante do olhar dos outros. 

O livro busca reconstruir a história da autora no ano de 1952 que, na época, era uma adolescente de 12 anos. Ambientado na cidade Y, na Normandia, onde todos além de se conhecerem, viam-se vigiados uns pelos outros, o que já era motivo para se sentirem envergonhados.

Já na primeira frase, o leitor é impactado com as palavras a seguir: 

MEU PAI TENTOU MATAR MINHA MÃE num domingo de junho, no começo da tarde ¹. 

Logo após, a autora vai detalhar o acontecido. Eu poderia reduzir a citação, mas optei por descrevê-la nas palavras da autora. Segundo Ernaux, era preciso chacoalhar essa cena há tantos anos congelada para arrancar de dentro dela seu caráter sagrado de ícone, pois se trata de algo onipresente em sua escrita. 

Vamos à cena:

“Eu tinha ido à missa das 11h45, como sempre fazia. Na volta deveria buscar alguns doces na confeitaria que ficava numa espécie de centro comercial, um conjunto de prédios provisórios construídos no pós-guerra, enquanto aguardavam o término da reconstrução. Ao chegar em casa, tirei a roupa de domingo e pus um vestido mais simples. Depois que os clientes já haviam ido embora e os postigos na fachada da mercearia estavam fechados, sentamos para comer, ouvindo rádio, com certeza, pois estava na hora do Le Tribunal, um programa de humor com Yves Deniaud no papel de funcionário subalterno, acusado continuamente de pequenos delitos sem importância e condenado a penas ridículas por um juiz de voz trêmula. Minha mãe estava de mau humor. A discussão que ela tinha começado com meu pai logo que se sentou durou toda a refeição. Depois de tirar a mesa e limpar a toalha de plástico, ela continuou a criticar meu pai, andando de um lado para o outro, como fazia quando estava aborrecida, pela minúscula cozinha – que ficava espremida entre o café, a mercearia e a escada que levava ao andar de cima. Meu pai ficou sentado à mesa, sem responder, com o rosto virado para a janela. De repente, começou a tremer de modo convulsivo e ficou ofegante. Ele se levantou e eu o vi segurar minha mãe com força e arrastá-la para o café aos gritos, com uma voz rouca, que eu nunca tinha ouvido. Fugi para o andar de cima e me joguei na cama, com a cabeça no travesseiro. Depois ouvi minha mãe berrar: “Filha, filha!”. A voz dela vinha da adega, que ficava ao lado do café. Desci correndo as escadas e gritei, com toda a força, “socorro!”. Na adega mal iluminada, meu pai agarrava minha mãe pelos ombros, ou pelo pescoço. Na outra mão, segurava a pequena foice de cortar lenha que ele arrancava do pedaço de madeira no qual ela costumava ficar cravada. A partir daqui, só consigo me lembrar dos soluços e dos gritos. Em seguida, estamos os três na cozinha de novo. Meu pai sentado perto da janela, minha mãe em pé ao lado do fogão e eu sentada debaixo da escada. Eu não conseguia parar de chorar. Meu pai não tinha voltado ao normal, estava com as mãos trêmulas e ainda com aquela voz estranha. Ficou repetindo “estás chorando por quê, se eu não fiz nada com você?”. Eu me lembro de ter falado uma frase “Você vai me afundar na desgraça”. Minha mãe disse “vamos lá, chega”. Depois, saímos os três para andar de bicicleta numa área rural que ficava nos arredores. Na volta, meus pais reabriram o café, como faziam todos os domingos à noite. Nunca mais se falou no assunto² .

A partir desse horror, Ernaux demonstra-nos como a vergonha sentida naquele momento, seguido de eles jamais falarem sobre o acontecido, marcaria a sua vida a ponto de ela conseguir escrever sobre isso somente quarenta anos depois. Essa lembrança de ter dito: tu vas me faire gagner malheur, ilustra o peso do sentido atribuído à cena, pois no dialeto normando, “gagner du malheur”, afundar em desgraça, significa ficar louca e infeliz para sempre depois de ter vivido uma situação de pavor. A suposição de infortúnio, de desgraça, e o medo de enlouquecer situam o choque do que acabava de testemunhar, assim como, as perspectivas sombrias de futuro. Mesmo que a cena jamais tenha se repetido, a protagonista ficaria num estado de vigilância permanente, atenta a qualquer alteração de voz ou expressão de seu pai.

O não dito os fez seguirem como se nada tivesse acontecido. Nesse sentido, a escrita, além de cumprir a função de reconstrução da história, pois a autora resgata as fotografias, os cartões postais da época, os jornais, as revistas, se constitui também, como ato de elaboração de seus efeitos traumáticos. O que não a impede de nos advertir sobre o equívoco de supor existir uma memória verdadeira de nós mesmos. 

Inicialmente, a vergonha parece ser consequência da violência do gesto de feminicídio, ou até mesmo, do impacto de reconhecer o potencial destrutivo de um pai que, até então, era visto como alguém doce. No entanto, o leitor vai constatando que a cena desencadeia todo um processo de reconhecimento do quanto está em questão a vergonha de suas origens, de sua filiação, de sua classe social, ou ainda, de ser julgada pelas pessoas mais ricas. “Etnóloga de si mesma”, é como se a partir daí a sua infância ficasse dividida em duas. Assim, ela passaria a ter consciência de seu lugar na sociedade pela vergonha. Como ela mesma diz, aquele domingo “passou a ser uma espécie de filtro” de suas possibilidades de viver. 

O fato de seus pais serem pessoas simples, antigos operários, na época, pequenos comerciantes, que davam duro numa mercearia/café para tocar a vida, contrastava com o universo da escola privada católica a qual ela frequentava. Na verdade, ela era a única da família e de seu bairro a estudar no ensino particular. A mãe, religiosa devota, o pai, homem de pouca instrução, representavam o provincianismo, o que parecia acentuar o seu sentimento de inferioridade. Assim, o gesto incompreensível de violência do pai levou para dentro da casa a atmosfera do machismo, do alcoolismo, da falta de cultura, da linguagem preconceituosa e de suas piadas vulgares, algo que, aparentemente, ficava circunscrito ao âmbito do trabalho. Essa fronteira imaginária foi transposta e a vergonha de pertencer a esse meio foi deflagrada fazendo-a se sentir indigna do mundo privilegiado da escola.

A riqueza desse livro além de abrir sentidos naquilo que a nossa ignorância ou ingenuidade, tende a reduzir a uma única significação, nos faz compreender que toda vergonha desvela alguma verdade de nós mesmos. Ao mesmo tempo que a protagonista busca transpor essas fixações que supostamente determinariam um lugar, lutando para reconhecer as diferenças em relação aos seus pais, ela também não se vê incluída no contexto das famílias mais abastadas e cultas. Desse modo, pode-se dizer, o envergonhado parece habitar uma angustiante zona de exclusão permanente.   

Em A vergonha, somos convocados a pensar sobre a complexidade das relações familiares, às injustiças sociais, as relações de poder e dominação nas diferenças de classes, assim como, nos limites da memória. Isso não impede a autora de falar da vergonha de sentir vergonha e de perceber que o envergonhado sofre como se fosse o único a sentir aquilo, como se estivesse exposto, desnudo ao olhar de alguém capaz de denunciar a fragilidade de sua imagem narcísica. 

Embora a autora nos diga que mesmo escrevendo sobre essa cena “ela continua sendo o quem tem sido desde 1952, um acontecimento ligado à loucura e à morte”, pode-se dizer que escrever, rememorar, falar, ajuda-nos a transpor os efeitos paralisantes das vergonhas que nos habitam. Ernaux convida a cada leitor a revisitar e chacoalhar as suas vergonhas, interrogando, assim, as consequências disso no rumo de suas vidas.

Notas

[1] Bernard Pivot, em entrevista realizada com Annie Ernaux, em 1997 (Archive INA), por ocasião do lançamento de seu livro, diz à sua entrevista: “a abertura da obra começa com essa frase lapidar”. Desde o meu ponto de vista, essa definição é precisa. Mesmo o ato não tendo sido consumado, de alguma forma, ela ficará capturada pela vergonha do gesto e os sentidos atribuídos a ele.

[2] Ernaux, A. A vergonha. São Paulo: Fósforo, 2022, p.09-10.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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