Opinião
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6 de abril de 2023
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18:46

O discurso do ódio mata (por Luiz Marques)

Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil
Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil

Luiz Marques (*)

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), presidido pelo ministro Alexandre de Moraes, além de prender a ralé de zumbis que serviu de massa de manobra no fatídico 8 de janeiro, deseja responsabilizar os organizadores, os financiadores e os mentores da tentativa frustrada de um golpe contra o Estado democrático de direito. No entanto, isso não deve ocultar o fato de que a extrema-direita possui uma militância ativa, que acredita na necessidade de implantação de uma “democracia iliberal”, para evocar a expressão criada por Viktor Orbán (Hungria) para designar um regime que mantém o calendário eleitoral, mas esvazia as instituições para concentrar os poderes. 

As mobilizações que nos últimos anos foram protagonizadas pelo movimento bolsonarista não aconteceram apenas por questões logísticas (aluguel de ônibus, diárias pagas, estrutura material dos acampamentos, etc.) resultantes do financiamento das ações extremistas. Há um contingente social, em torno de 22% (DataFolha) da população total, que se identifica com a agenda da ultradireita e mescla a tríade formada pelo neoconservadorismo moral, o neoliberalismo econômico e o neofascismo político. Os “três tristes tigres” perderam alguns dentes com a derrota nas eleições de outubro, porém continuam capazes de confrontar os valores civilizatórios.

Sua principal conquista no quadriênio do desgoverno genocida foi inocular o ressentimento e o ódio na sociedade brasileira. A política armamentista, que distribuiu mais de um milhão de armas de vários calibres (revólveres, pistolas, fuzis), potencializou a organização de guardas pretorianas informais com registro de clubes de Caçadores, Atiradores Desportivos, Colecionadores (CACs), de que se aproveitaram também os enclaves criminosos (as milícias, o narcotráfico) para legalizar o próprio arsenal nas periferias, conforme todos estão cansados de saber.

Diante das barbáries acontecidas a partir de 2017, no Brasil, muitos comentaristas acusam a hegemonia cultural nutrida pela lógica dominante. As investidas contra as escolas, com a proposta complementar do “escola sem partido” e da “educação domiciliar”, e contra as universidades (um ex-ministro teve o desplante de associar os campus universitários federais à produção e ao consumo de maconha), criminalizaram as instituições de ensino de alta a baixo. 

O conhecimento, a ciência e a cultura foram desqualificados pela “soberba da ignorância”. Tal negacionismo cognitivo levou ao elogio da força bruta, num contexto em que o Estado perdia o monopólio da violência, crescentemente. Os feminicídios, os atos de racismo e de lgtbfobia aumentaram com a naturalização da guerra hobbesiana de todos contra todos. Até que pulou o muro da creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau. No espectro da direita tradicional, o jornalista Merval Pereira viu no acontecimento as digitais de Bolsonaro. À esquerda, o sociólogo Marcelo Zero lembra que é da natureza do bolsonarismo o antiintelectualismo.

Os think tanks, a exemplo do Instituto Mises Brasil, do Estudantes pela Liberdade e do Ordem Livre, entre outros, com recursos nacionais ou internacionais, funcionam como laboratórios de ideias em defesa do livre mercado. Seus membros costumam se encontrar no Fórum da Liberdade (Porto Alegre), para reafirmar o dogma ideológico de que o livre mercado representa um valor superior à soberania popular. Recusam o princípio republicano que converte o povo no soberano da nação, nos tempos modernos. As lideranças são treinadas para difundir as diretrizes do Consenso de Washington (1989), que Gilberto Maringoni sintetiza “na abertura comercial, nas privatizações, na disciplina fiscal, no corte de gastos públicos, nas desregulamentações da economia, no câmbio flutuante e na aceitação de regras de propriedade das patentes propostas pelos países centrais”, no livro coordenado por Jessé Souza e Rafael Vali, Resgatar o Brasil

Significa que a restauração do país, depois da destruição, passará por uma forte disputa ideológica na sociedade civil, como já estamos vendo no embate do governo Lula com o Banco Central (BC), que se arvora o papel de um inexistente quarto poder no controle da política monetária, entregue aos funcionários do rentismo financeiro, que é quem ganha com os estratosféricos juros altos da Taxa Selic. Assim tem sido também nas áreas social, de tributos, do meio ambiente, da cultura, da saúde, da infraestrutura, do trabalho, da igualdade de gênero e de raça. 

A dimensão intelectiva da luta de classes nunca foi tão importante, como é agora para enraizar a democracia (formal e material) no senso comum, a fim de desenvolver a razão pós-neoliberal na percepção da cidadania. Sem a racionalidade do neoliberalismo, traduzida no hiperindividualismo, na mercantilização das consciências, no enaltecimento das desigualdades e na financeirização do Estado, – as vertentes conservadoras e autoritárias que hoje parecem sólidas se desmancham no ar. O Primeiro Testamento bíblico falava na Lei de Talião, fratura por fratura, olho por olho, dente por dente. Os progressistas no século XXI devemos reatualizar o procedimento de modo a opor cosmovisão por cosmovisão, valores por valores, ideais por ideais. Despojada de metas ideológicas, a política não conseguiria interpelar a rebeldia e nem a utopia. 

(*) Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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