Opinião
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28 de março de 2023
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07:38

Flagrantes da nova ágora digital (Coluna da APPOA)

Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Volnei Antonio Dassoler (*)

Encostados num muro, lado a lado, entre deitados e sentados, um grupo de sete trabalhadores desfrutava das escassas manchas de sombra que as raras e pouco frondosas árvores ofereciam. O sol escaldante do meio-dia obrigava a se abrigar da exposição aos raios solares e a procurar um pouco de sossego no intervalo de almoço antes do trabalho da tarde. A esta cena primeira acrescentemos agora uma segunda camada do cotidiano: seis desses trabalhadores aproveitavam o descanso distraídos no uso de aparelhos celulares. 

Por si só, banal e prosaico, esse flagrante da paisagem urbana revela o modus vivendi da socialização contemporânea, numa cena que se repete nas arquibancadas de um estádio de futebol ou nas mesas de um restaurante qualquer. O que iria “bagunçar” o status quo normal do evento foi o fato de que o único sujeito que não estava manuseando o smartphone ergueu a cabeça na minha direção e me olhou devolvendo o olhar que eu lançava sobre seus colegas.

Desalojado do lugar de exterioridade, senti-me interpelado por aquele olhar que me jogou dentro da própria cena que havia me chamado a atenção me fazendo perceber que eu também, desde um determinado ponto, compunha, como personagem, aquele quadro urbano. Um tanto desconcertado, segui apressado tentando evitar que o meu desassossego ganhasse o mundo do pensamento. Entretanto, desta vez a urgência da vida não cumpriu sua função, e o episódio não teve o esquecimento como destino. 

Nesta ágora contemporânea do mundo digital, o espaço público e a vida privada assumem uma territorialidade cada vez mais virtual seduzindo o sujeito animado pelo desejo de que somos testemunhas. As atuais plataformas não são mais concebidas apenas como ferramentas tecnológicas que simplificam a vida, sendo projetadas como dispositivos inteligentes que conseguem armazenar e converter por meio de algoritmos os rastros digitais que deixamos nas incursões pelo mundo digital.

Com efeito, esses dados são transformados em informações inteligíveis num processo de sistematização da subjetividade que regula o corpo biológico e o corpo pulsional numa totalização algorítmica que projeta antecipar e atalhar nossos caminhos. Ainda que nos arriscamos a prever e conjecturar sobre o que será do nosso futuro mediado pelo universo virtual, o fato é que toda e qualquer realidade – virtual ou real – é sempre uma experiência de estar com alguma modalidade de outro/Outro cujas implicações psíquicas teremos que lidar. 

(*) Psicanalista, Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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