Opinião
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21 de fevereiro de 2023
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20:13

Três acontecimentos (Coluna da APPOA)

Fachada do Dopinha, centro de tortura clandestino localizado na Rua Santo Antônio, em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21
Fachada do Dopinha, centro de tortura clandestino localizado na Rua Santo Antônio, em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

Um acontecimento

Três anos depois de iniciado um árduo e profícuo trabalho de pesquisa para produção e distribuição da primeira vacina contra o coronavírus (escrito em minúscula para não lhe dar mais grandiosidade que ele merece), eis que anunciada a chegada da vacina bivalente. Ela inaugura esse momento em que, desejo, possamos transitar sem tanto receio desse inimigo invisível que nos encontrou descrentes dos avisos de perigo, embaraçados com a prepotência, e empurrou, quem pode e tinha, a viver em esconderijos.

Acontecimento dois

A Comissão de Anistia renasceu. Responsável pelos atos de reparação, resgate e preservação da memória dos afetados pelas violências praticadas durante o regime militar no Brasil, foi constituída como política de Estado em 2002. Originariamente formada por representantes da sociedade civil e do Estado, desde 2017 vinha sofrendo duros ataques, o que levou à completa descaracterização de seus preceitos e à desarticulação de suas ações na vigência dos dois governos federais instalados após o golpe de 2016. O último foi noticiado em meados de 2022. Os responsáveis circunstanciais, pelo que queriam fosse espólio, recomendaram a retirada dos livros produzidos na vigência do Projeto Clínicas do Testemunho, ou receberiam outro destino. Incinerados? Essas obras são parte do acervo de memória testemunhal dos anos de chumbo no Brasil. Conhecimento, diferença e liberdades têm sido alvos privilegiados das diferentes inquisições onde padeceu porções da nossa humanidade.

Ocorre que o uso da violência, que se espera destinada a sepultar apenas um tipo de pensamento e verdade intoleráveis, sustentada por um conjunto de indivíduos, retorna e incide sobre toda a coletividade. Mesmo quando são estimulados no discurso os mecanismos de negação e recusa de uma parte da experiência social. Queimar um testemunho ou fazer pesar sobre ele sigilo centenário é parte do conjunto de medidas extremas para tentar suprimir um passado que – desculpem-me o clichê – volta a nos assombrar.

A história se transmite ainda que com adoção de mecanismos de controle espúrios. Pode ser recoberta por véus, esses que se deslocam com os sopros de testemunhos a revelar aqui e ali vestígios do objeto escondido. Uma memória retorna como enigma num fragmento de sonho repetitivo; num devaneio diurno; num cheiro de laranja evocando sensações de ternura por uma mão solidária que a ofereceu pelas grades em dias de clausura; no coração que palpita acelerado diante de um desconhecido qualquer a reviver um fantasma de outra época.

E a publicação de um livro

Terminei de ler por esses dias Humanos Exemplares (2022), da escritora Juliana Leite, editado pela Companhia das Letras. Em 2018, com Entre as mãos, ela venceu o Prêmio SESC de Literatura na categoria romance. O segundo foi escrito em 2020 durante a experiência de isolamento social da autora. Talvez por isso a narrativa atualize com delicadeza temas sensíveis e difíceis como a experiência da solidão em contextos de exceção, a morte e os desaparecimentos forçados a deixar em suspenso os rituais de despedida. E as relações de amor em suas mais variadas formas.

Natália é uma mulher muito velha que vive sozinha no apartamento da família, antigo refúgio afetivo de amigos, os “queridos”. Ela mantém contato telefônico diário com a filha que mora no outro lado do mundo, no “oceano superior”. A velha é a única testemunha viva, de seu grupo, da passagem pelos Anos de Chumbo.

Os objetos da casa são os vaga-lumes de Natália a iluminar os fragmentos de memória que vão tecendo as histórias individuais no contexto coletivo de duas épocas – ditadura e pandemia.

Uma panela de macarrão – acompanhada dos afetos que se compartilha à mesa – generosamente preparada por Natália e distribuída entre os alunos famintos de uma escola pública, de repente é alvo de suspeição. Vira perigosa estratégia e instrumento de cooptação “comunista”.

Os biscoitos amanteigados feitos por Sarah, a melhor amiga. E aquele, com excesso de gengibre, de picância, assado especialmente para oferecer a um “inspetor” infiltrado na escola. Primeiro de forma sub-reptícia. Depois, despudoradamente presente. Impondo temor.

Ou o bolo que alude aos bons momentos compartilhados e também à mão da censura. Nas páginas do jornal, onde sempre estiveram as notícias políticas, de repente aparecem muitas receitas de bolo. Todos os dias de um ponto em diante. Isso de início, quando a maioria ainda estava distraída. Mais tarde, nada, apenas a moldura. A página do jornal vazia a revelar a consigna: ou se diz o que o regime quer ou não se diz nada. Faça silêncio. Ou resista, fale baixinho, cochiche com os amigos ao lado. Quem sabe um dia todas essas vozes juntas sejam grito. Como culminou no movimento Diretas Já em 1984.

Os excessos, a violência de duas épocas e seu antídoto estão declarados com delicadeza pela força da narrativa poética de Juliana Leite. Ali estão desvelados os inimigos inicialmente invisíveis que afetaram uma geração, e outras; e também o amor, mais difícil de reconhecer quando os véus se adensam. Não só nessas horas é um alento contar com a presença, ou com a lembrança inspiradora, dos nossos “queridos”.

(*) Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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