Opinião
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5 de fevereiro de 2023
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08:50

Filmes emocionantes e as ditaduras militares da Argentina e do Brasil (por Milton Pomar)

Ricardo Darín e Peter Lanzani no filme 'Argentina, 1985' (Divulgação)
Ricardo Darín e Peter Lanzani no filme 'Argentina, 1985' (Divulgação)

Milton Pomar (*)

Impossível não se emocionar com o filme “Argentina, 1985”, e com as muitas lembranças que ele provoca, dos sofrimentos de milhares de pessoas com as ditaduras militares em todos os países da América do Sul, nos anos 1960-1980. O filme é simples e direto: conta o julgamento dos nove comandantes das três juntas militares durante a ditadura iniciada em 1976 e acabada em 1983. Lançado em setembro de 2022, “Argentina, 1985” ganhou o Globo de Ouro 2023 de melhor filme estrangeiro e está indicado para o Oscar 2023 na mesma categoria. 

Quando começou o julgamento dos comandantes militares em Buenos Aires, em abril de 1985, o general presidente do Brasil saiu pela porta dos fundos, para não passar a faixa ao sucessor civil, e na Argentina foi lançado o filme “A história oficial”, sobre os bebês tirados de mães detidas em centros de tortura e morte dos militares na ditadura e criados com identidade falsa por outras famílias. Em 1986, “A história oficial” ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro.

Lembrar da ditadura militar na Argentina é muito doloroso, porque, como disse o promotor Júlio Strassera (representado no filme pelo ator Ricardo Darín), ela foi “feroz, clandestina e covarde”. E cruel em grande escala: “Segundo Marcelo Fabián Sain, entre os anos de 1976 e 1979, foram computados 9 mil desaparecidos e 1898 mortos. O autor ressalta que ainda haveria entre 5 mil e 9 mil casos de desaparecimento em que não houve denúncia, o que faz com que o número de mortos esteja entre 16 mil e 21 mil.” (“Grupos de pressão política formados por militares da reserva no Mercosul). Em 1980, havia 28 milhões de habitantes na Argentina, e esse tamanho da sua população na época evidencia as dimensões da matança e desaparecimentos cometidos por militares e policiais no país – se as mortes cometidas pela ditadura militar no Brasil tivessem sido na mesma proporção, passariam de 100 mil.

“Argentina, 1985” tem o mérito de registrar e divulgar um momento histórico de importância para a Humanidade – o julgamento de comandantes militares responsáveis por atrocidades de todo o tipo contra seu próprio povo, movidos por ideologia de extrema-direita e a doutrina da “Segurança Nacional” propagada pelos Estados Unidos (EUA) em toda a América Latina. 

Atrocidades levantadas em 1984 pela Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas (Conadep), criada em 15/12/1983 pelo presidente Raúl Alfonsín, para apurar os casos de desaparecimento, sequestros e assassinatos cometidos durante a ditadura militar. Concluída em 20/09/1984, a Conadep foi presidida pelo escritor Ernesto Sábato, cujo relatório recebeu o título de “Nunca Más”. 

Um dos inúmeros episódios absurdos daquele período levantados pela Conadep foi “La Noche de Los Lápices” – como ficou conhecida a detenção, tortura, assassinato e desaparecimento dos corpos de estudantes envolvidos em um protesto por meia passagem. Esse caso, ocorrido em setembro de 1976, é contado em um livro e em um filme (lançado em setembro de 1986).

Escapou desse julgamento, mas não de outros, o general Ramón Camps, chefe da Polícia da província de Buenos Aires e depois da Polícia Federal Argentina, em 1977-79, e conhecido como “Carniceiro de Buenos Aires”.  Nesse período, ele teria mandado matar cinco mil pessoas, segundo suas próprias palavras, em entrevista nas páginas amarelas da revista Veja (esqueci a data da edição, mas não o que ele afirmou). 

Transportar prisioneiros em aviões e jogá-los para morrerem no mar era rotina de muitos pilotos da força aérea argentina, cumprindo ordens de seus comandantes – prática tratada em outro filme argentino (e espanhol), também protagonizado por Ricardo Darín: “Kóblic”, de 2016. 

Ainda que “1985” tenha depoimentos de alguns raros sobreviventes de torturas, o mais forte do filme é a tensão permanente sobre o promotor Strassera e sua equipe, formada somente por jovens, que não se deixaram intimidar com as ameaças e fizeram o seu trabalho de produção de provas no prazo exíguo que lhes foi imposto. 

Chama a atenção ainda a semelhança dos discursos negacionistas, dos militares argentinos envolvidos nesses milhares de crimes, com os dos comandantes no Brasil, tentando se livrar da responsabilidade do que mandaram ser feito e que sabiam exatamente o que estava ocorrendo. Aqui inventaram os “porões do regime”, tentando convencer que o que havia nos subterrâneos era desconhecido por quem estava nos “andares superiores”. Precisou ser liberada nos EUA uma troca de mensagens da Agência Central de Inteligência (CIA), para que essa “narrativa” dos comandantes militares brasileiros fosse desmentida cabalmente: eles ordenavam sim tudo o que era executado nos “porões” pelos “sádicos”.

Por isso, todo o esforço de investigação da promotoria tinha como objetivo central provar que as barbaridades ocorridas haviam sido executadas cumprindo ordens do alto comando, porque ocorreram de maneira semelhante nos 380 centros clandestinos de repressão existentes no país, e, dada a hierarquia militar, somente poderiam ser realizadas a partir de ordens recebidas. 

É inevitável se perguntar no final do filme por que processos tão semelhantes – as ditaduras militares no Brasil (1964-1985) e na Argentina (1976-1983) – tiveram resultados tão diferentes no final – lá as condenações dos comandantes e aqui a autoanistia (confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, em 28/04/2011) dos militares e policiais envolvidos em torturas, assassinatos e desaparecimentos de ativistas políticos. 

Tomara que “Argentina, 1985” ganhe o Oscar (saberemos dia 12 de março), porque assim quem sabe surjam outros filmes sobre aquele período, e a geração nascida nos anos 1990/2000 saiba o que fazem militares e policiais em ditaduras – mostrado de maneira terrivelmente crua no corajoso filme brasileiro “Pra Frente Brasil”, lançado em março de 1982, ainda durante o governo do general Figueiredo.

(*) Geógrafo, mestre em Políticas Públicas

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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