Opinião
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7 de fevereiro de 2023
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07:02

A minha alegria atravessou o mar (Coluna da APPOA)

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Robson de Freitas Pereira (*)

Como será o amanhã? /Responda quem souber.”
Didi e João Sergio [1]

A minha alegria atravessou o mar/e ancorou na passarela
Didi e Mestrinho [2]

Os versos citados nas epígrafes acima já fazem parte da antologia dos sambas. Transcenderam sua função original – ser samba enredo da Escola e ocuparam espaço na cultura musical brasileira. O amanhã: “ a cigana leu o meu destino/eu sonhei/bola de cristal/jogo de búzios, cartomante/eu sempre perguntei/o que será o amanhã? Como vai ser o meu destino?” ou os versos de É hoje; “é hoje o dia da alegria/e a tristeza/nem pode pensar em chegar”. Quem não se lembrar “é ruim da cabeça ou doente do pé”. Simone fez sucesso com o samba que terminava afirmando; “e o realejo diz/que eu serei feliz”. Caetano Veloso e Fernanda Abreu entre outros, cantaram em diferentes momentos o “desembarque fascinante no maior show da terra”.

Só por haver criado estas duas peças antológicas, Didi ou Gustavo Adolfo de Carvalho Baeta Neves já deveria figurar no panteão dos compositores. Porém, ah porém, em seus 52 anos de vida ele ainda colocou mais 22  sambas-enredos no desfile das Escolas, alguns pelo Salgueiro, mas a maioria pela sua União da Ilha que ele viu nascer quando a família mudou-se do Méier para a Ilha do Governador (depois do falecimento do pai) [3]

A trajetória de compositor, foi cheia de obstáculos. Para agradar a família, principalmente à mãe, tornou-se Procurador da República. Para evitar maiores conflitos com os colegas de profissão e com a matriarca, adotou o apelido – Didi e foi admitido na ala dos compositores. Reconhecido nas quadras e pressionado em casa (até sua mulher detestava sua paixão pelo mundo do samba), Baeta Neves tentou desistir. Afastou-se por alguns anos. Não aguentou. Separou-se, trocou de profissão e voltou à Escola em 1978. Emplacou “O amanhã”.  

Em 1982, É hoje foi o samba mais cantado. Mas não foi fácil o caminho até a Avenida (o Sambódromo ainda não existia). O carro abre-alas do desfile de 82 quase não chegou para mostrar que “minha alegria atravessou o mar e ancorou na passarela”. As rodas quebraram e a travessia demorou o dia inteiro. Samba de Didi já tinha enfrentado críticas: invejosos internos e externos à ala dos compositores questionavam “como é que alegria atravessou o mar e depois vem dizer que eu vim descendo a serra cheio de euforia?”. Mais ou menos como os que reclamam que roteiros adaptados não são fiéis aos originais ou que a série de ficção não retratou os fatos históricos fielmente. Falta leitura (Fernando Pessoa já disse que “navegar é preciso/viver não é preciso”) e espírito poético aos que não entendem que alegria e tristeza podem atravessar o mar, ou sair da alma e pular nas ruas simultaneamente.

Didi, o ex-procurador Baeta Neves, faleceu em 1987. Quatro anos depois, o compositor virou enredo na sua escola do coração. Em 1991, toda a comunidade insulana retornou a avenida para brindar a vida, a alegria e a paixão tricolor de Didi. E mais uma vez o imortalizou na passarela e na música popular brasileira com De bar em bar – Didi um poeta:

“Hoje eu vou tomar um porre, /não me socorre que eu tô feliz
Nessa eu vou de bar em bar/beber a vida que eu sempre quis
E no bar da ilusão eu chego, /...minha alegria deu um porre na tristeza” [4]

Esta arte de superar os obstáculos e saber que eles fazem parte da vida, parafraseando Guimarães Rosa em seu “viver é muito perigoso”, faz parte de nossa civilidade. Nossa cultura precisa desta “efervescência coletiva” que há muito recebe críticas e restrições das mais diferentes formas e fontes [5]. Desde antes da “descoberta” do novo mundo que festas coletivas foram olhadas e analisadas com desconfiança. Coisa de primitivos, rituais satânicos e, o velho adágio: reuniões de massa são sempre perigosas, pode sair violência. 

Na vida coletiva atual também é assim: em função desta herança suspeita, o medo das aglomerações grassa e tem gente que não suporta uma metáfora, poética muito menos. Exige certezas, sobre o mundo, a sexualidade e até mesmo descobertas científicas. Por isto, se entregam facilmente aos discursos autoritários; pois eles só trazem certezas e garantias; uma delas que se obedecermos fielmente aos ditames da ordem unida estaremos protegidos, bem-aventurados acreditando na terra plana e nas benesses da ditadura.

Por isso, o rigor da lei para os baderneiros, golpistas, seus incitadores e financiadores é fundamental ( a propósito de 08 de janeiro passado). A punição para os coniventes e “autoridades” que abusaram de suas funções incitando e autorizando a violência também é muito importante. Trabalho imediato e de longo prazo; pois exige vontade política, coragem e inventividade.

Simultaneamente, ou até mesmo para que a tarefa de sustentação da democracia seja persistente e permanente e faça contraponto a uma missão de destruição sacrificial “a alegria é a prova dos nove” . 

Ailton Krenak com quem enfrentamos a pandemia acreditando que as ideias que agregam diversidade, fazendo contraponto ao universalismo ocidental, podem adiar o fim do mundo disse que: “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido de experiência de vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida”.  

As peripécias e dificuldades pessoais e coletivas enfrentadas para que um samba acontecesse, ou um enredo se realize no Carnaval também demonstram que mesmo a alegria não é conquistada sem desejo e persistência em sua realização. E, se daqui a alguns dias você quiser sair na rua fantasiado ou não, só para ver o movimento ou cair na folia, bom carnaval.

Notas

[1] O amanhã, samba-enredo da GRES União da Ilha, autor Didi- Gustavo Adolfo Carvalho de Baeta Neves (1936-1987), para o carnaval de 1978. (por questões burocráticas da sua Escola, Didi tinha que cumprir uma “quarentena” em sua volta; por isso o amigo João Sergio da Silva Filho inicialmente assinou a autoria). Disponível em: https://youtu.be/-TODGaVkS9E 

[2] É hoje, samba enredo da União da Ilha, de 1982. Compositor principal Didi – Gustavo Adolfo Carvalho de Baeta Neves. Disponível em: https://youtu.be/NuMjTo9t_T0 

[3] Para maiores detalhes: “Sambas de enredo- História e arte’, Alberto Mussa (sobrinho do Didi) e Luis Antonio Simas. Ed. Civilização brasileira. 2023, RJ.

[4] Disponível em https://youtu.be/hx00LiI0W9s

[5] Vide Barbara Ehrenreich, Dançando nas ruas- uma história do êxtase coletivo. Record. RJ/SP. 2010.

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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