Opinião
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23 de janeiro de 2023
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17:29

Davos e a fragmentação global (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

A moderna globalização consolidou-se sob a égide da ideologia neoliberal. Dentre os seus propagadores, o Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês) se consolidou como um importante destaque. O Fórum nasceu em 1971 como uma organização não governamental por iniciativa do engenheiro e economista alemão Klaus Schwab. Com o patrocínio original de cerca de mil empresas, o WEF apresenta a sua missão institucional como sendo a de “… envolver os principais líderes políticos, empresariais, culturais e outros líderes da sociedade para moldar as agendas globais, regionais e dos setores produtivos”. Isso porque: “Acreditamos que o progresso acontece reunindo pessoas de todas as esferas da vida que têm o impulso e a influência para fazer mudanças positivas. Seus encontros anuais tornaram-se um palco para a celebração da liberalização e da desregulamentação dos mercados.

Em 2023, em sua 36ª edição, CEOs e várias das lideranças políticas reunidas em Davos parecem pouco dispostas a comemorar. Para eles o mundo adentrou em uma era onde se multiplicam os riscos de fragmentação e conflitos. Com o tema “Cooperation in a Fragmented World”, os seus organizadores assumem que depois de várias crises locais e globais e duas das maiores recessões da história do capitalismo (2009 e 2020), vive-se um período em que a instabilidade tornou-se a regra. Nas palavras de Klaus Schwab: “Vemos as múltiplas forças políticas, econômicas e sociais criando uma maior fragmentação em nível global e nacional. Para enfrentar as causas profundas dessa erosão da confiança, precisamos reforçar a cooperação entre o governo e os setores empresariais, criando as condições para uma recuperação forte e duradoura. Ao mesmo tempo, deve haver o reconhecimento de que o desenvolvimento econômico precisa ser mais resiliente, mais sustentável e ninguém deve ser deixado para trás.” 

Comprado pelo valor de face, o argumento de Schwab pode ser interpretado da seguinte forma: não haverá cooperação e confiança efetivas em um mundo dividido e com os níveis crescentes de desigualdade. As massas não proprietárias estão cada vez mais comprimidas em suas expectativas de progresso, particularmente nos últimos 15 anos. Davos 2023 defende a cooperação. Todavia, Schwab e seus amigos pensam ser possível colher este importante objetivo mesmo que tenham semeado, por décadas, os problemas que agora denunciam. 

O padrão de funcionamento do comércio e das finanças, antes centrado na noção de integração crescente das estruturas produtivas e financeiras, pressupunha níveis elevados de estabilidade institucional, política e securitária nos nódulos chave das relações econômicas internacionais. Conflitos e crises as mais diversas sempre foram abundantes, tolerados ou até mesmo incentivados como forma de controle de ativos e de mercados estratégicos por parte das nações mais poderosas. Porém, os mesmos não inviabilizaram a ampla reorganização das cadeias produtivas e do comércio a partir dos interesses estratégicos das grandes empresas multinacionais e dos Estados que as ancoram. Da mesma forma, a desigualdade na distribuição da renda e da riqueza, até recentemente celebrada como parte constitutiva da suposta meritocracia dos mercados, não era apontada como um problema a ser enfrentado. 

Desde a crise financeira global (CFG), que produziu uma contração na renda mundial em 2009, percebe-se com maior nitidez que parcelas vocais da intelectualidade conservadora e das elites econômicas se defrontam com a necessidade de reconhecer que neoliberalismo produziu efeitos tão deletérios para a reprodução estável da vida social em muitos países, que já não é possível vislumbrar a manutenção integral do status quo. Ao mesmo tempo, como partes diretamente interessadas na preservação da ordem vigente, passam a apelar por ajustes que limitem a destruição em curso. Talvez uma das melhores expressões de tais contradições é o mais recente livro de Francis Fukuyama, Liberalism and Its Discontents. Para este influente cientista político, a visão liberal de mundo e as democracias constitucionais estão sob forte ameaça. Seus críticos mais ferozes, tanto na direita iliberal, quanto na esquerda radical, usariam dos efeitos socialmente disruptivos das políticas neoliberais como justificativa para a defesa da derrubada dos regimes constitucionais. Para os grupos iliberais, a ordem democrática é falsa e beneficiaria apenas uma ínfima fração das sociedades. As instituições tradicionais ignorariam as angústias das massas populares esmagadas pelas forças impessoais dos mercados liberalizados em escala global.

Todavia, o neoliberalismo produz uma fragrância inebriante demais para ser simplesmente abandonado pelas elites proprietárias. Foi inequívoco o seu sucesso em recuperar os privilégios e as influências perdidas pela reação social-democrata. Suas políticas de promoção da liberalização irrestrita do comércio e das finanças, de desmonte do Estado de Bem-Estar Social, de transferência do patrimônio público para o setor privado por meio das privatizações, de redução na tributação dos mais ricos e de desregulamentação em vários setores econômicos, garantiram o mais intenso processo de reconcentração da renda, da riqueza e do poder político em décadas. A vitória neoliberal teve por contraface o esmagamento das massas não proprietárias, a crise ambiental, a propagação de conflitos domésticos e internacionais. As incertezas contemporâneas ampliam-se, ainda mais, pelas mudanças estruturais derivadas da Revolução Digital, da Robotização e da emergência da Inteligência Artificial, também fenômenos tributários do avanço da mercantilização, do progresso tecnológico e das disputas pelo poder global.

O WEF aprofundou sua análise no documento “Global Risks Report 2023”, onde separa os riscos de curto e médio prazo e os de longo prazo. Para o horizonte até 2025, há os seguintes elementos centrais: pressões em termos de aumento no curso de vida das famílias, a desaceleração econômica e os desequilíbrios financeiros associados aos níveis elevados de endividamento de empresas, famílias e governos, a “guerra econômica” entre os principais poderes, especialmente EUA e seus rivais, a menor intensidade das medidas de contenção no enfrentamento aos problemas climáticos, e a polarização nas sociedades. Para a década de 2030, o agravamento da crise climática ganharia premência.

 

A Economia Global na Fragmentação: perspectivas para 2023 e 2024

Nos termos colocados pelo Global Risks Report 2023, o enfretamento das guerras, dos conflitos culturais, das pandemias, da retração econômica, da crise climática e da longa lista de problemas que se multiplicam exigiria maior capacidade de cooperação interestatal. Todavia, o neoliberalismo teria legado Estados Nacionais com menores capacidades relativas de atuar. Nesta perspectiva, o grande problema é que tal ideologia de inspiração libertária produziu um padrão de globalização que agora não se sustenta mais em nenhuma de suas dimensões prévias. No nível político, a liberalização que se seguiu à Guerra Fria supunha como inalterada a capacidade de os EUA imporem sua vontade perante os demais atores internacionais. Isso já não existe com a ascensão da China e a tentativa de reposicionamento da Rússia e de outros poderes emergentes. Sem segurança, compromete-se a estrutura de redistribuição espacial das cadeias produtivas, que se centraram na Ásia, em geral, e na China, em particular.

Agora, europeus e estadunidenses buscam reduzir sua dependência energética, produtiva e comercial dos “rivais”. Querem evitar que o estilo prévio de globalização canalize suas tecnologias e recursos financeiros para seus “competidores estratégicos”. A velha globalização morreu e o que virá depende dos desdobramentos dos conflitos em curso. Até aqui, conforme sugere um estudo recente da McKinsey, as grandes economias não conseguiram diversificar tanto assim a origem de suas importações. A inércia da interdependência segue firme.

O Banco Mundial converge com vários dos aspectos discutidos em Davos. Seu último “Perspectivas para a Economia Global” deixou um recado forte:  revisou-se para baixo as projeções de crescimento do produto (PIB) global para 2023 e 2024, que agora são de +1,7% e + 2,7%. Nas estimativas anteriores, o Banco Mundial trabalhava com +3,0% no biênio, de tal sorte que tais métricas foram rebaixadas em -1,3 p.p. e -0,3 p.p. No caso da América Latina, espera-se expansão de +1,3% e +2,4% naqueles dois anos. Com isso, a região seguirá com um desempenho abaixo da média mundial. Nestes marcos, os governos locais seguirão com menor capacidade relativa de amortecer a instabilidade social e política que se manifesta em muitos países.

O baixo dinamismo econômico é amplo e atinge a virtualmente todas as regiões, o que se percebe no rebaixamento das projeções de variação do PIB em 2023 e 2024 (ver tabela 1.1, p.4, Global Economic Prospects, 2023). Ainda em termos de estimativas, em 2024 o nível do produto (PIB) dos países emergentes e em desenvolvimento ainda estará 6% abaixo das projeções realizadas por aquela instituição quando do auge da pandemia da Covid-19.  Vale dizer, a recuperação observada em 2021 não garantiu tração suficiente para a maioria das economias. O crescimento da renda per capita permanecerá em ritmo inferior àquele observado no decênio que antecedeu a pandemia. Para se tomar o exemplo da África Subsaariana, que abriga 60% da população mundial considerada em condições de pobreza monetária, a renda per capita crescerá apenas 1,2% em 2023-2024. Com isso, a pobreza monetária deverá se ampliar.

A deterioração na qualidade de vida das pessoas também ocorre em países avançados, emergentes e em desenvolvimento. A renda real das famílias está em queda por efeito da alta generalizada nos preços, com níveis médios de inflação que são os mais elevados em quatro décadas na OCDE (ver “Global Inflation”, Yardeni Research, January 2023). O crescimento na oferta de novos empregos e as eventuais correções de salários não têm sido capazes de atenuar a perda no poder de compra das pessoas. Se o acesso aos bens e serviços privados está mais difícil, a perda de vigor das redes de proteção social completa o horizonte de problemas com os quais as massas não proprietárias devem enfrentar em muitos países. Isto porque, a expansão fiscal dos últimos quinze anos, utilizada para enfrentar os efeitos das duas recessões globais e proteger os ricos, ampliou intensamente os níveis de endividamento público. 

De acordo com os dados do FMI, a dívida pública bruta do setor público atingiu 112% do PIB nos países avançados, em 2022; 64 p.p. acima dos níveis de 2007 (48% do PB). Nos países emergentes e em desenvolvimento, a variação foi de 36% (2007) para 64% (2022) do PIB. Até aqui, a maioria dos ajustes fiscais tem sido realizados por meio da contenção de despesas nas áreas sociais e de infraestrutura de modo a acomodar outros gastos correntes e financeiros. Os ricos seguem protegidos de políticas mais ativas de recuperação nas receitas públicas. Por esta ótica, houve queda de arrecadação em 2 p.p. do PIB nas economias avançadas e de 3 p.p. do PIB nas economias emergentes e em desenvolvimento, respectivamente, ao se tomar a média de dois períodos: 2007-2010 versus 2019-2022. 

As contradições das elites estão longe de terminar, assim como os efeitos destrutivos da ideologia neoliberal. A globalização comandada pelo poder estadunidense criou as sementes de sua própria destruição. Esta, por sua vez, ameaça a preservação da integridade do tecido social em um amplo conjunto de países, inclusive os EUA, bem como as condições objetivas para a própria reprodução da vida humana no planeta, dada a gravidade da crise ambiental. Schwab e o seu Fórum pedem uma cooperação que já não pode ser construída no âmbito do modelo de sociedade por eles propagada por décadas.

(*) Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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