Opinião
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24 de dezembro de 2022
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15:07

Será a volta do crescimento pró-pobre no Brasil? (por Christian Velloso Kuhn)

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Christian Velloso Kuhn (*)

Com a aprovação recente da PEC da Transição, há de se esperar que o novo governo cumpra a sua promessa de “colocar o pobre no orçamento”. Muitos economistas do mainstream, que pensam o oposto do título de meu artigo “Mais Desenvolvimentismo, Menos Fiscalismo”, mostraram-se contrários à proposta da PEC, demonstrando toda a insensibilidade que lhes é habitual. 

Para esses economistas fiscalistas, o pífio crescimento econômico sob a gestão de Guedes na pasta de Economia no governo Bolsonaro, média de 1,33% ao ano em 2019-2022 (considerando a previsão de 3,05% para 2022 do último Boletim Focus do Banco Central de 19/12/2022), parece-lhes satisfatório. Esse desempenho é praticamente o mesmo do biênio 2017-2018 (1,32% a.a.) obtido pelo seu antecessor Michel Temer. É possível ver por outras estatísticas, até mais relevantes que o PIB, que o desempenho econômico do governo Bolsonaro foi desastroso, como desemprego, salários, miséria, pobreza, fome, dentre outros.   

Nenhuma das variáveis supracitadas obteve um desempenho favorável enquanto a agenda neoliberal de Guedes prevaleceu na política econômica do governo Bolsonaro. Percebe-se que os economistas do mainstream se agradam muito mais com o cumprimento dessa agenda pelos dois últimos governos, compatível com suas ideologias, independentemente da sua performance. Para eles, o “como” importa mais que o “que”. 

Porém, algo pouco tratado até o momento é o impacto econômico positivo, além do distributivo, que pode surtir na economia brasileira com a prática de “colocar o pobre no orçamento e rico no imposto de renda”. Aplica-se, nesse caso, um conceito keynesiano raramente difundido entre os economistas do mainstream: a propensão marginal a consumir. Basicamente, é quanto os indivíduos variam proporcionalmente o seu consumo dado um determinado aumento da renda. Assim, por exemplo, se é concedido um benefício para uma pessoa no valor de R$ 600,00 (valor do Bolsa Família para 2023), e ela consome R$ 540,00 desse montante, diz-se que a sua propensão marginal a consumir é de 0,9 (540/600) ou 90%, o mesmo que R$ 0,90 para cada R$ 1,00 de renda adicional recebida. 

Ocorre que essa propensão varia conforme o nível de renda das pessoas. Um benefício de R$ 600,00 tende a ser consumido na sua totalidade para pessoas que recebem até um salário mínimo, ou pouco mais do que isso, enquanto se fosse concedido a alguém que obtém uma renda mensal de R$ 6.000,00, é mais provável que ela consumirá uma parte pequena ou até poupar todo o valor recebido.

Quanto maior o valor da propensão marginal a consumir, maior o incentivo à demanda agregada e ao crescimento do PIB. Isso porque esse incremento de renda concedido será gasto, repercutindo em cadeia em toda a economia. Suponhamos que o valor de R$ 600,00 é transferido a uma família de baixa renda, que gasta em sua totalidade em alimentação no (super)mercado. Esse dinheiro será usado para pagar, por exemplo, os fornecedores do estabelecimento. Estes, por sua vez, empregarão esse montante, ou boa parte dele, para arcar com despesas de insumos ou salários dos trabalhadores e assim por diante. No presente caso, o valor inicial de R$ 600,00 circulará gerando até R$ 1.800,00 (3 vezes) de dispêndios, elevando o nível de renda, demanda e produção da economia. Simplificadamente, para aqueles menos familiarizados com conceitos econômicos, este é um exemplo de como funciona o multiplicador keynesiano de gastos.   

Logo, se cada agente gastasse apenas 50% do valor obtido no exemplo acima, os R$ 600,00 iniciais elevariam a renda em apenas R$ 525,00 (300 + 150 + 75), ao passo que uma propensão marginal a consumidor de 1 (100%), como ilustrado no parágrafo anterior, geraria um aumento de R$ 1.800,00 (3 X 600). Desse modo, percebe-se que quanto maior a propensão marginal a consumir, maior será o multiplicador keynesiano de gastos. Ou seja, mantendo o mesmo exemplo, dado um determinado valor de R$ 600,00 concedido como benefício aos mais pobres, surtirá um efeito na renda superior do que se fosse dado aos mais ricos, pois a propensão marginal a consumir daqueles é maior do que destes.

Por outro lado, a elevação da alíquota do imposto de renda dos mais ricos retém uma parte maior dos seus ganhos do que é arrecadado atualmente pelo governo. Esse dinheiro, em tese, deixaria de circular na economia, cujo efeito é o inverso do exemplo do Bolsa Família. Isso porque enquanto um benefício social é uma transferência de dinheiro que sai do governo para os indivíduos, o pagamento de impostos é o contrário, é uma transferência de dinheiro que sai da renda dos indivíduos para o governo. Mas por que o aumento da alíquota do imposto de renda dos mais ricos não neutraliza o efeito da concessão de um benefício social para os mais pobres?

Além do seu efeito distributivo, uma vez que aumenta a renda dos mais pobres e reduz a renda disponível (renda menos tributos) dos mais ricos, como a propensão marginal a consumir dos primeiros é maior do que a destes últimos, o multiplicador keynesiano de gastos dos mais pobres será mais alto do que o efeito negativo da redução da renda disponível dos mais ricos sobre a economia. Por esse motivo, que tanto como política de distribuição de renda, como política de crescimento econômico, é viável financiar os benefícios sociais dados aos mais pobres com imposto de renda dos mais ricos. 

Ainda, parte dos gastos dos mais pobres é revertido para os governos sob a forma de arrecadação de impostos indiretos, como sobre bens (ICMS e IPI) e serviços (ISS). Por conseguinte, há de se considerar igualmente esse efeito de contrapartida sobre as finanças públicas desse tipo de política distributiva. 

A conjugação de “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda” pode, portanto, não somente elevar a taxa de crescimento do PIB do país, como melhorar a qualidade desse crescimento. O motivo é que, com esse formato de política econômica, a tendência seja de que a renda dos mais pobres acompanhe o crescimento médio da renda de toda a população (PIB). Com isso, havendo crescimento econômico seguido de uma redução da pobreza, teremos o que se chama de um crescimento pró-pobre

Obviamente, como bem nos lembra Amartya Sen, o aumento da renda dos mais pobres é o atendimento a apenas uma de suas necessidades, carecendo de outras políticas nas áreas de educação, saúde, saneamento, etc. É de se esperar que o próximo governo consiga lograr não somente uma política de combate à pobreza, fome e desigualdade via transferência de renda, mas que proporcione uma vida melhor, principalmente aos menos favorecidos, nas demais áreas sociais e ambientais. 

(*) Professor e economista do Instituto PROFECOM

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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