Opinião
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21 de dezembro de 2022
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07:31

Por que o déficit público é tão importante para os liberais? (por Ricardo Dathein)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Ricardo Dathein (*)

Chama a atenção a importância que os economistas liberais dão ao déficit público, como se fosse a variável mais importante da economia. Nessa concepção o Estado estaria sempre competindo com o mercado pelos mesmos recursos, a economia estaria sempre em estado de escassez. Por isso, com déficit público, os juros aumentariam, desestimulando a produção e os investimentos. Trata-se também de uma visão psicológica sobre a economia, na qual é fundamental a confiança de que o Estado não terá que aumentar impostos no futuro, para cobrir os déficits. Assim, entendem que, com equilíbrio fiscal, haveria confiança no mercado e, com isso, estímulos à produção e aos investimentos.

Para essa visão liberal o mercado geraria sempre equilíbrio, em princípio, a não ser por exceções, falhas. O desequilíbrio (visto sempre como negativo e não como um fato da realidade e fator de dinamismo) surge, assim, de fora da órbita econômica do mercado. E o Estado não é aceito como um ente basilar do funcionamento do capitalismo, inclusive na sua formação histórica e enquanto regulador das relações sociais (não apenas garantidor das “regras do jogo”) fundamentais para o bom funcionamento da economia.

Nas teorias econômicas liberais, em geral, só existe um tipo de força endógena ao mercado, com características positivas, que geram sempre equilíbrio, pleno emprego, eficiência, meritocracia, crescimento e bem-estar social. Portanto, nessa concepção, resultados negativos (desequilíbrio, desemprego, ineficiência, privilégios, ciclos e problemas sociais) surgem de forças externas ao mercado, como sindicatos de trabalhadores ou atuação indevida dos governantes ou políticos. Por isso, inclusive, essa concepção pode aceitar a ditadura política para defender as forças de mercado.

Assim, governos, e não apenas os de esquerda, são sempre entendidos como, em princípio, gastadores e irresponsáveis. A política, a necessidade de reeleição etc., tenderia a suscitar esse comportamento. Desse modo, os governos precisariam ter suas “mãos amarradas”, não apenas controladas. Mas os piores irresponsáveis seriam os governos de esquerda ou social-democratas, que pretendem ir além das determinações do mercado. Então, governos liberais seriam mais responsáveis, enquanto os não liberais seriam irresponsáveis, gastadores, “populistas”.

Mas, “estranhamente”, a realidade tem mostrado o oposto no Brasil. Por exemplo, o governo FHC assumiu com uma dívida líquida do setor público total de 30,0% do PIB (valor de dezembro de 1994) e concluiu seu mandado, em dezembro de 2002, com essa dívida em 59,9%, o dobro. Assim Lula assumiu e, quando do término de seu segundo mandato, a dívida tinha se reduzido para 38,0%. Dilma assume e, ao final de 2014, o valor foi de 32,6%. Aí, no segundo mandato, a política econômica mudou para um padrão liberal, de forma que, em agosto de 2016, término de seu governo, a dívida tinha se elevado para 42,8%. Temer concluiu seu mandato liberal com a dívida em 52,8% (dez/2018), e Bolsonaro deixa uma dívida líquida de 58,3%, valor de outubro de 2022, último dado disponível (BCB).

É claro que a conjuntura internacional e fatores incontroláveis afetaram os resultados, principalmente no caso do governo Bolsonaro, com a pandemia. Mas chama a atenção que esse fato ocorre em vários momentos da história econômica do país. Ou seja, em diferentes situações, com governos liberais, a dívida sobe, e, em governos mais intervencionistas, a dívida se reduz.

Então, será mesmo que a explicação liberal está correta ou é apenas mais uma visão vulgar, que vê apenas a aparência dos fenômenos, da realidade. Todos concordam que é necessário controlar gastos e evitar desperdícios. É claro que sempre há exemplos de pessoas irresponsáveis, na esquerda e na direita. E que há problemas na condução política e lobbys empresariais e burocráticos muito fortes.

Nas visões econômicas antiliberais essa variável, o déficit público, é muito mais determinada pelo desempenho da economia do que determinante desse desempenho. Todas as concepções econômicas não liberais aceitam a existência de forças econômicas que geram equilíbrio, mas também entendem que há, endogenamente ao mercado, forças que geram desequilíbrios. Ou seja, há, concomitantemente, forças econômicas endógenas ao mercado que produzem tendências conflitantes. É a chamada contradição em processo. O mercado capitalista tende a gerar equilíbrio e desequilíbrio, crescimento e crise/ciclos, emprego e desemprego, eficiência e ineficiência, bem-estar e mal-estar social etc. Essas forças econômicas estão interagindo e, com isso, tendem a resultar em um funcionamento cíclico e crises periódicas. É claro que podem existir forças exógenas ao mercado, como uma pandemia, mas em geral o que produz desequilíbrios e ciclos são forças endógenas, intrínsecas ao próprio mercado. Por isso mesmo a intervenção do Estado deve ser aceita, no sentido de contrabalançar as forças negativas. Enfim, o que gera déficit e dívida não é prioritariamente a gestão econômica, mas os ciclos econômicos inerentes a uma economia capitalista.

Então, tendo a economia capitalista um comportamento cíclico, quanto mais liberal a gestão da economia, mais esse comportamento cíclico se concretiza. Ao contrário, quando menos liberal for a gestão econômica, quanto mais controle social, mais os ciclos podem ser amenizados. Por isso, nos períodos liberais, os ciclos, as crises, tendem a ser mais intensos, e é por isso que o déficit público e a dívida pública podem crescer mais. São os momentos de recessão que reduzem a receita pública, enquanto o gasto fica muito mais rígido. Por isso, quanto mais amplos e duradouros forem as fases de baixa dos ciclos, maiores tendem a ser os déficits. E isso tende a ocorrer mais intensamente nas gestões liberais.

Essa tendência é amplificada pela austeridade fiscal. Ou seja, ao invés de ampliar gastos públicos para compensar os cortes de gastos privados nas crises econômicas, os governos liberais tendem a cortar gastos, em atitude pró-cíclica. Em situações de recessão não há concorrência entre setor público e privado pelos recursos. Na realidade esses recursos estão parados, à espera de quem os mobilize. Por isso também não é adequada a ideia de que os juros aumentarão com o déficit público.

Os economistas liberais, por óbvio, não vão admitir que sua teoria (e, portanto, sua prática) está equivocada. Como suas políticas não funcionam, querem cada vez mais regras fiscais (no Brasil já existem mais de 10), cada vez mais draconianas, para “amarrar as mãos” do Estado. Não conseguem, com isso, resolver os problemas fiscais, mas, em compensação, produzem cada vez mais ineficiência nas gestões públicas. Isso pode não ser um problema para os liberais, pois apenas confirma suas ideias negativas sobre o Estado.

Além disso, nas gestões liberais diminui o controle social sobre o gasto público e a receita pública, o que também tende a ampliar o déficit e a dívida. Ao contrário, nas gestões antiliberais, o controle social tende a ser maior, possibilitando mais racionalidade à receita e à despesa públicas, de acordo com prioridades econômicas e sociais.

Mas aí surge outra explicação para a resistência à intervenção do Estado. Ou seja, a ideia de que o capital, o mercado, deve comandar não só a economia, mas a própria sociedade e a política. E é por isso, fundamentalmente, que o Estado, os governos, devem ter suas “mãos amarradas”. Assim o Estado mínimo será comandado pelos interesses do capital, de acordo com sua racionalidade.

Demonstra-se, assim, a contradição entre a direita liberal e a esquerda. Na visão dessa última, para se alcançar eficiência e justiça na gestão das finanças públicas, é necessário não o Estado com as “mãos amarradas”, mas uma democracia efetiva, participativa, com autoridade sobre esse Estado. É isso que facilitará, também, o controle sobre e a dívida e o déficit públicos, colocando-os a serviço da sociedade.

(*) Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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