Opinião
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27 de dezembro de 2022
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06:27

“Commemorare” (Coluna da APPOA)

Cena da série turca
Cena da série turca "Cabeça Quente" (Reprodução)

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

O que a memória ama fica eterno.
Adélia Prado

“A mãe dele brincava com um espinho redondo de sol”

A linguagem verbal que produz laço entre os humanos é fundamento de várias disciplinas, ponto capital da psicanálise. A série Cabeça Quente (2022), exibida pela Netflix – com todas suas fragilidades cinematográficas e de roteiro – traz um argumento de fundo interessante sobre quando essa condição radical da experiência humana se estilhaça. A trama é adaptação do livro Sıcak Kafa (2016) do escritor turco Afşin Kum, e não tem ainda tradução para as línguas latinas. 

“Congele as laranjas e retire o gás”

Parte dos humanos está infectada por um “vírus semântico”, que se contrai ao escutar um doente por Disparate. O mal transtorna a linguagem e implode os sentidos dos vocábulos até ali pactuados e compartilhados pela comunidade. Transitando a esmo pelas ruas de uma cidade em ruínas, os disparatados estão prisioneiros da incomunicabilidade. Em permanente afasia. Uma Babel na língua sem cura conhecida. O único antídoto é usar tapa-ouvidos para criar uma surdez temporária autoimposta e evitar também a segregação que acompanha, como efeito não colateral, o Disparate.

“Estou errada? Desligue a privada.”

É conhecido o aforismo de Lacan que a comunicação não existe. Não se trata de que não possamos conversar, mas de que há algo no conteúdo que, no percurso de um a outro, se perde ou se deixa contaminar (aqui também) pelas condições da enunciação e da interpretação. Num dos extremos dessa linha podemos colocar os disparates da Série a metaforizar a radicalidade dos seus efeitos no laço social. No outro, o mutismo. Entre eles as trocas linguageiras cotidianas e seus mal entendidos, pois um vocábulo está também cativo dos sentidos compartilhados numa cultura e da experiência individual. Requer esforço, ou melhor seria dizer dedicação, para construir um entendimento comum, mesmo se estamos bem advertidos da presença de um resto incomunicável. Pode-se tentar afrouxar os emaranhados nascidos dos mal-entendidos à condição do semelhante poder dizer, dizer-se. 

“Enquanto os carrosséis pulam com os tomates, os ratos descem pelo muro do campo.”

Isso que podemos ler como a loucura dos personagens disparatados também se apresenta noutras conformações linguageiras fora da fantasia literária. No arco das patologias no mundo real, um disparate parece menos assustador que um discurso uníssono. Não admite dúvida. Não se areja por argumentos ou demonstrações de irrazoabilidade, tampouco científicas. Fabricado pelo desejo de verdades imutáveis almeja permanências. Diga-se então, com todas as letras, também um discurso absolutamente lógico fora da fantasia pode ser formado por uma conjunção de disparates.

“Corra se puder escovar a pizza do abajur. Esqueça o eixo.”

Apesar da obviedade, reescrevo que a qualidade dos laços que construímos com os outros é afetada pela linguagem verbal. Não só pela verbal, é verdade. E pela memória, “fronteira entre o passado e o presente”, a preservar o rastro do que fomos, da história que vivemos juntos ou separados. Através dessas duas extraordinárias capacidades humanas podemos “comemorar” qualquer acontecimento, feliz ou não, se lembrarmos que essa palavra deriva do latim commemorare: recordar com os outros com o coração. 

“Os preciosos vem e vão.” Comece um novo ano co-memorável.

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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