Opinião
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8 de novembro de 2022
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07:03

Nunca mais! (Coluna da APPOA)

Ricardo Darín e Peter Lanzani no filme 'Argentina, 1985' (Divulgação)
Ricardo Darín e Peter Lanzani no filme 'Argentina, 1985' (Divulgação)

Gerson Smiech Pinho (*)

“Nunca mais!” Com este par de palavras, o promotor Júlio Strassera concluiu a leitura do discurso de acusação no julgamento de um grupo de militares ocorrido na Argentina, em 1985. Entre os indiciados estava o ditador Jorge Rafael Videla, presidente do país entre 1976 e 1981, condenado à prisão perpétua na ocasião daquele julgamento. Após os trágicos e sangrentos anos de ditadura militar na Argentina – marcados pela censura, violação de direitos humanos, tortura, desaparecimentos e incontáveis mortes – esse episódio pôde encaminhar rapidamente a punição de alguns dos responsáveis diretos pelo truculento e brutal genocídio experimentado em todos os cantos do país.

O desenrolar desse memorável julgamento constitui o argumento do recente “Argentina, 1985”, filme dirigido por Santiago Mitre e protagonizado por Ricardo Darín, que encarna o personagem do promotor responsável pelo caso, Júlio Strassera. O roteiro se baseia nos eventos imediatamente subsequentes ao restabelecimento da democracia na Argentina, em 1983, quando o então presidente Raúl Alfonsín determinou que os ex-comandantes do regime militar fossem levados à juízo por seus crimes. Enquanto os réus pressionavam para serem julgados por tribunais militares, a história ganha um novo rumo quando o processo é endereçado à justiça civil.

Durante o julgamento, em certa passagem do categórico discurso de acusação feito por Strassera, escutamos que “o sadismo não é uma ideologia política, nem uma estratégia bélica, mas uma perversão moral.” Este enunciado conduz diretamente ao que foi escutado nos depoimentos das vítimas do regime de exceção, que compõem alguns dos momentos mais intensos e sensíveis do filme, impactantes e repletos de emoção. A partir da crueza dos relatos, o sadismo e a crueldade dos algozes são postos em relevo, podem ser observados a olho nu. A violência do laço perverso se atualiza novamente na tentativa dos réus e de sua defesa de imputar culpa às vítimas, ao tentarem justificar a violência contra elas com base no combate ao terrorismo subversivo.

Na sequência da leitura de seu discurso, o promotor ainda afirma que “este processo significou para quem teve o privilégio doloroso de vivenciá-lo profundamente, uma espécie de descida às zonas mais tenebrosas da alma humana nas quais o sofrimento, a degradação e o terror atingem profundidades difíceis de imaginar antes e de compreender depois.” “Argentina, 1985” reafirma a necessidade de preservar a memória de um passado difícil de assimilar, de imaginar ou de compreender, mas, por isso mesmo, necessário de ser recordado ao invés de ser esquecido. Nas lembranças e nos depoimentos das vítimas, a construção da história se edifica nas bordas do trauma que é de cada um, mas também é coletivo. 

Ainda que sejam países vizinhos e com histórias que se aproximam e se cruzam, a Argentina pôde fazer diferente do Brasil ao condenar os culpados logo após o fim da ditadura militar, ainda que a história não tenha terminado por ali e que modificações posteriores tenham sido feitas nas penas estabelecidas. Em tempos em que, em nosso país, a democracia é colocada novamente em risco e que uma parcela da população clama por intervenção militar, é fundamental a retomada da memória desses regimes de exceção. A mensagem deixada por “Argentina, 1985” é tão fundamental quanto necessária. Nunca mais!

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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