Opinião
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30 de novembro de 2022
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20:06

Covid Zero e o mandato celestial de Xi Jinping (por André Moreira Cunha e Luiza Peruffo)

Xi Jinping, presidente da República Popular da China (Xinhua)
Xi Jinping, presidente da República Popular da China (Xinhua)

André Moreira Cunha e Luiza Peruffo (*)

O príncipe é o barco, as pessoas comuns são a água. A água pode sustentar o barco ou a água pode virar o barco.

(Xun Kuang, filósofo chinês, (310 AC – 235 AC)

Lockdos e Protestos

Os protestos se multiplicam na China em razão da rígida política de Covid Zero, especialmente depois do incêndio que matou dez pessoas em Ürümqi, capital da província de Xinjiang. Supostamente, tal tragédia poderia ter sido evitada se os controles que impedem a saída dos moradores de suas casas não fossem tão estritos. O governo nega tais especulações. O China Daily e o Xinhua informaram que não havia quaisquer obstáculos físicos a impedir a saída das pessoas do prédio incendiado. Ainda assim, as pessoas saíram às ruas e expressaram o que parecia impensável há poucos anos: a defesa aberta da queda de Xi Jinping e do PCC.

Correspondentes internacionais registraram as manifestações de descontamento das pessoas comuns e a prisão de jornalistas ocidentais. Frases como “Não queremos testes de PCR, mas comida (ou liberdade)” se tornaram comuns, assim como “fora Xi” ou “fora PCC”. No final de semana (26 e 27 de novembro) o policiamento ostensivo não conteve a expansão do movimento nas grandes cidades do país. Já o uso das novas tecnologias de controle social parece estar dando resultados. Com o maior e mais moderno aparato de vigilância de pessoas do planeta, o governo chinês foi capaz de identificar quem saiu às ruas e iniciou um movimento ativo de busca dos “criminosos”. Já no começo da semana, protestos programados via redes sociais foram abortados pelas autoridades.

Por sua vez, a agência Reuters informa que os impactos econômicos da política Covid Zero poderão ser maiores do que os já computados. Os mais influentes bancos de investimento estão revisando para baixo as projeções de crescimento em 2022 (2% a 3%) e em 2023 (4%) para níveis bem abaixo da meta oficial de 5,5% a.a. Os efeitos desta realidade em potencial serão sentidos em todo o mundo, particularmente em países que dependem muito das exportações para a China, tanto de equipamentos e componentes de alto conteúdo tecnológico, quanto de commodities.

Para se começar um incêndio basta uma faísca e muito material inflamável. O descontentamento dos chineses com as restrições impostas pelo Comitê Central do PCC ocorre em concomitância com um período de desaceleração no crescimento econômico e de insatisfação com o não equacionamento adequado dos problemas no setor da construção civil. Para a jornalista sênior da BBC, Tessa Wong, há toneladas de ressentimento armazenado: “Nos últimos três anos, a paciência de um bilhão de pessoas na China foi esticada ao limite, diminuindo cada vez mais a cada bloqueio e rodada de testes em massa da Covid. Agora, ela se esgotou.”

Não passou despercebido que Xi dobrou a sua aposta na política de controles estritos da pandemia. O Comitê Central aprovado no 20º Congresso do PCC foi escolhido a dedo por ele, cujos membros têm alinhamento total com aquela estratégia, particularmente Li Qiang, que comandou o lockdown em Xangai e tornou-se o “número 2 em comando”. Em outubro, no Congresso do Partido que garantiu o seu terceiro mandato, o líder chinês foi enfático e disse em seu discurso que: “Ao lançar uma guerra popular total para impedir a propagação do vírus, protegemos a saúde e a segurança das pessoas o máximo possível e alcançamos conquistas tremendamente encorajadoras tanto na resposta à epidemia quanto no desenvolvimento econômico e social.” 

As manifestações recentes sugerem que o mesmo povo agora está em guerra contra a “guerra de Xi”. A política de Covid zero está desorganizando a economia e a vida das pessoas, o que coloca em xeque o discurso que legitima o poder do PCC. Em seu discurso comemorativo aos cem anos do PCC, em 2021, Xi destacou que a legitimidade do partido se assenta na superação do “século de humilhações” e na condução do país ao topo do poder global: “… o Partido uniu e liderou o povo chinês em batalhas sangrentas com determinação inabalável, alcançando grande sucesso na nova revolução democrática… Através de uma luta tenaz … (nós) … mostramos ao mundo que a nação chinesa alcançou tremenda transformação ao se levantar, prosperar e se tornar forte … o rejuvenescimento nacional da China se tornou uma inevitabilidade histórica.” Compete ao PPC a preservação da unidade nacional, da estabilidade social e da prosperidade material. Para Xi, o “Sonho Chinês” é a sua realização na vida de cada habitante do seu país.

Até recentemente, o ritmo elevado de crescimento da renda permitiu combinar a acumulação de capacidades estatais, inclusive militares e tecnológicas, com a ampla disseminação de melhorias substantivas na vida cotidiana dos chineses. O sonho chinês era uma realidade e seu aprofundamento uma expectativa dada como certa. Agora, o Congresso do Partido demarcou uma nova etapa, que coloca a segurança nacional como um tema hierarquicamente superior na agenda do Comitê Central e de Xi. A economia ficou em um segundo plano. Para tanto, Xi afastou lideranças que priorizavam as reformas econômicas e se cercou de aliados que compartilham de sua visão de futuro, na qual os temas securitários ganharam proeminência.

Covid Zero e a obsessão pelo controle

Por todos os parâmetros possíveis de se observar, a China tem sido bem-sucedida no enfrentamento da pandemia. Por isso mesmo, não se compreende o porquê da rigidez imposta pelo PCC, a qual tem gerado enormes desgastes políticos, sociais e econômicos. De acordo com o Our World in Data, em abril deste ano a China viveu um pico de novos casos confirmados, de 25 mil/dia (média móvel semanal). Os lockdowns foram implantados até mesmo em centros nevrálgicos da economia, como no caso de  Xangai, cujos 25 milhões de habitantes de tiveram de enfrentar dois meses de isolamento. Em novembro, os novos casos de Covid-19 registrados no país são ainda maiores, com médias diárias acima dos 30 mil. Ainda assim, a China tinha pouco menos de 20 casos confirmados para cada um milhão de habitantes (em 27/11/2022), abaixo dos indicadores dos países de renda média-alta (28,3), do conjunto da Ásia (47,5) e da média mundial (66,3), bem como inferior ao de outras grandes economias como os EUA (107,3), a Europa (251,5) e o Japão (805,4). 

Cumulativamente, a China atingiu 1,5 milhão de casos, o que equivalia a apenas 0,2% do total global (641,5 milhões). Em termos de mortes, tinha 5,2 mil confirmações ou 0,08% dos óbitos registrados em todo o mundo (6,6 milhões). Pouco mais de 90% dos chineses receberam pelo menos uma dose de vacina, contra um indicador de 63% para o restante da população mundial, excluída a própria China. Sempre como proporção da população total, a potência asiática se encontra em posição superior aos países europeus e norte-americanos em termos de se completar o protocolo inicial de imunização. Os desafios que se colocam têm mais a ver com a qualidade da vacina chinesa, o acesso às doses de reforço diante do surgimento de variantes do vírus original e a baixa adesão da população idosa e de outros grupos vulneráveis às iniciativas de renovar a imunização. 

A estratégica chinesa de enfrentamento da pandemia envolve testagem maciça, de tal modo que nos últimos dois anos tem-se mantido uma média diária de testes ao redor de 10 para cada 1.000 habitantes. Para se colocar em perspectiva, nos últimos sete dias, a Índia teve um indicador de 0,3, e a Alemanha e os EUA apresentaram 1,1. Poucos países com grandes populações atingem 1/1000. Portanto, o caso chinês se destaca não somente por estar entre os 10 países que mais testes realiza em novembro de 2022, mas pela manutenção de níveis elevados de testagem de forma permanente.

Analisados em termos comparativos, a China segue como um exemplo de sucesso. Por isso mesmo, o caráter draconiano da política chinesa se destaca. O Dr. Anthony Fauci, diretor da NIAID, que é a agência estadunidense de controle de doenças infectocontagiosas, diz que a política chinesa “não faz sentido do ponto de vista da saúde pública”. O economista Stephen Roach concorda e enfatiza que a única coisa que Xi conseguirá em manter a política de Covid Zero será o “crescimento zero” da renda.

Uma hipótese plausível para explicar o comportamento de Xi é a busca de controle social absoluto e, por decorrência, o medo de que pandemias gerem situações disruptivas em escala nacional. Não foi o acaso que fez com que a palavra “segurança” fosse utilizada oitenta vezes no discurso de Xi no 20º Congresso PCC. A análise do “The Asia Society Policy Institute”, liderado pelo sinólogo, diplomata e ex-primeiro ministro da Austrália, Kevin Rudd, sintetizou assim este tema: “A tendência mais notável que emergiu do Congresso é a clara priorização das preocupações de segurança sobre todas as outras questões… a imagem do 20º Congresso do Partido é de um PCC e um estado chinês totalmente alinhados com a visão de Xi de ‘segurança nacional abrangente’ e uma ‘economia fortaleza’, com foco firme na preparação para o confronto geopolítico e a competição no futuro previsível” A mesma conclusão pode ser encontrada nos influentes The Diplomat, CICS, Foreign Policy, Foreign Affairs, Brookings Institution, Modern Diplomacy, para citar alguns.

Xi e o Mandato Celestial 

A longa história chinesa foi marcada por vários períodos de instabilidade e ruptura doméstica, usualmente associados às transições dinásticas. Os imperadores chineses sustentavam sua legitimidade por serem portadores do “Mandato Celestial” (Tianming). Sempre que incapazes de guiar adequadamente os destinos dos chineses, a troca de comando emergia como um destino natural. Nenhuma liderança conhecedora da sedimentação milenar dos valores morais do seu povo pode se dar ao luxo de ignorar os eventuais sinais da perda daquele mandato. Como destacava o filósofo confucionista Xun Kuang (310 AC – 235 AC), o povo pode sustentar ou derrubar os seus líderes. Xi Jinping e os demais membros do Comitê Central são plenamente conscientes deste grilhão histórico. Não à toa, eles nunca se cansam de exaltar o legado dos comunistas em resgatar o orgulho nacional e conduzir o país para uma era de prosperidade. 

Os caminhos trilhados pela China nos últimos anos estão repletos de obstáculos, alguns deles decorrentes das próprias decisões de seus líderes em manter o crescimento elevado e, com isso, a legitimidade política. Como um veículo que avança em alta velocidade em uma estrada sinuosa, as pressões no sentido do descontrole são cada vez mais intensas. A política de Covid zero implica em longos e desgastantes lockdowns, com repercussões negativas imediatas sobre o desempenho econômico. Ela agrava os problemas financeiros do país, como o acúmulo de estoques de passivos em níveis tão ou mais elevados do que aqueles que precederam episódios de crises em países de média e de alta renda.

Protestos localizados, demonstrando insatisfações diversas, são comuns na vida social chinesa. Já protestos em grande escala e com o questionamento direto da autoridade do PCC são raros. De acordo com o Financial Times “… em termos de seu escopo nacional e desafio direto à autoridade partidária, o movimento crescente contra a política de Covid-zero do presidente Xi Jinping não tem precedentes desde os protestos da Praça da Paz Celestial em 1989. No protesto de sábado em Xangai, as pessoas gritaram abertamente para que o partido e Xi “renunciassem”.” Steve Tsang, diretor do China Institute/SOAS, sugere que Xi e o PCC estão diante de um dilema que redundará em mais repressão e controle: recuar drasticamente da política de Covid Zero sinalizaria fraqueza; insistir nela aprofundaria a insatisfação popular e o descontrole da economia. O caminho instintivo do PCC parece ser o de insistir busca por “segurança” e “controle”, imaginando que o maior dinamismo econômico viria a reboque. 

Na história chinesa, todas as dinastias imperiais ruíram após a sociedade se convencer de que os detentores do poder absoluto perderam o “Mandato Celestial”. Xi e seus comandados deverão entregar prosperidade material e um mínimo de liberdades individuais, o que se mostra incompatível com a obsessão com a política de Covid Zero.

(*) Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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