Opinião
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28 de novembro de 2022
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11:48

Alô, alô, marcianos… (por Céli Pinto)

Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Céli Pinto (*)

Apesar de o resultado das eleições ter apontado para um Brasil dividido quase igualmente entre democratas, de diferentes colorações ideológicas e partidárias, que votaram em Lula, e reacionários antidemocráticos, que votaram em Bolsonaro, não me parece razoável pensar que o país possa ser simplificado desta forma.

Os eleitores de Lula são muito diversos e abarcam desde a esquerda representada pelo PSOL até o liberalismo de personagens como Pérsio Arida. Não há problemas nesta diversidade, mas uma inteligência política raramente alcançada no país. Haverá problemas para governar com tal diversidade? Certamente, e muitos, mas é disso que trata a democracia: de incertezas, necessidade de coalizões, de aproximações e distanciamentos. 

O grupo de transição é grande demais, é diverso demais, traz problemas e sugestões demais, não chega a consensos rápidos. Tudo isso é verdadeiro e é ótimo que assim seja.  A mídia, maldosamente, dá a entender que, no CCBB, estão reunidas 1000 pessoas discutindo sobre tudo, dando opinião sobre tudo, falando todos ao mesmo tempo. Qualquer pessoa que pare para pensar por 30 segundos se dará conta de que não é o que acontece. Se pensar por um minuto, concluirá que pessoas com muitas opiniões, on-line, e algumas visitas esporádicas à Brasília, neste momento, é muito bom. É assim que se procede quando é preciso pensar um governo a partir do nada, do zero, da terra arrasada que o Brasil se tornou. Aos grupos técnicos e políticos, o núcleo da transição, cabe articular sugestões, tomar em consideração demandas, repensar o Brasil. É o que estão fazendo.  

Mas há um outro lado que não pode ser desconsiderado: os 49% de eleitores e eleitoras brasileiras que votaram em Bolsonaro. Sobre eles, devemos ter cuidado com generalizações apressadas. Antes de tudo, é preciso considerar que há uma importante diferença entre os que votaram em Bolsonaro e os bolsonaristas. E quem pretende um Brasil promissoramente democrático deve se ocupar desses dois grupos. Não estarei muito longe da verdade se calcular que cerca de 20% são os eleitores que apenas votaram e 30% são bolsonaristas. Talvez os percentuais sejam excessivamente pessimistas, mas prefiro o pessimismo à síndrome do avestruz.

O novo governo que será inaugurado a 1º de janeiro tem condições de recuperar os 20% que votaram em Bolsonaro sem ser bolsonaristas. São os que estavam assustados com o risco de perder o emprego, pois sofreram assédios de toda a ordem por parte dos patrões; os que viram pingar dinheiro, de uma hora para outra, em suas casas, depois de anos de fome e penúria; os que acreditaram nas notícias mais descabidas e apavorantes, espalhadas a rodo pelo bolsonarismo. Juntam-se a eles os que sofrem de um antipetismo patológico, cuja verdadeira ojeriza não é contra os possíveis malfeitos dos governos Lula-Dilma, mas exatamente pelos benfeitos, que tiraram desta parcela, por exemplo, o monopólio do ensino universitário e da segurança de poder fazer três refeições diárias. Este último grupo é o elo de ligação com os 30% de bolsonaristas que eu, sem medo, chamaria de uma população fascista. Estou cansada de eufemismo, de discussões acadêmicas sobre o conceito. São fascistas e se comportam como tal. E mais, se Bolsonaro sucumbir a sua insignificância depois de deixar o Planalto, eles buscarão outro ancoradouro.

Há, mais do que nunca, necessidade de se preocupar com este grupo. Pensar que vão cansar de fechar estradas ou de fazer papel de palhaços, chamando por extraterrestres na frente de quarteis, é ver apenas a ponta do iceberg. É lógico que os que pensam o fascismo, o promovem, inclusive financeiramente, não vão piscar lanterna de celular para marcianos. Ao mesmo tempo, não podemos apenas ridicularizar estes vivandeiros. O fascismo sempre precisou de uma massa fanática e politicamente ignorante. Essa gente é convencida de verdades absolutas, de teorias conspiratórias as mais absurdas, mas também muito acolhedoras, pois com três ou quatro frases de efeito explicam o mundo. E viver em um mundo de incertezas às vezes é muito complicado. 

O fascismo à brasileira atual, possivelmente, não terá nem virtú, nem fortuna para impedir a posse do presidente eleito Luíz Inácio Lula da Silva. Mas reúne um grupo poderoso que tem presença nos quarteis (das Forças Armadas e das polícias militares estaduais); em setores do serviço público civil; no empresariado, em especial do politicamente degradado sul do país; em parte significativa do agronegócio; nas igrejas pentecostais e no conservadorismo católico, que dominam pelo medo.  Também encontra guarida em parcelas da classe média sexista, racista, homofóbica e falsamente moralista, formada por homens que defendem a família porque não querem abrir mão de seu poder de assédio sexual fora de casa e por mulheres que bradam contra o aborto para esconder os seus próprios, feitos em clínicas “clandestinas” e bem equipadas. 

O que fazer com o fascismo presente?  Não se pode impedir ninguém de pensar como um fascista, mas deve-se legalmente impedir qualquer um de agir como um fascista. Aqui mora o perigo desta terra brasilis. As elites que dominam o aparato estatal são morosas e condescendentes com os crimes contra a democracia, contra os direitos humanos, contra o bem viver de toda a população, mas muito rápidas para matar pobres e negros nas comunidades com balas perdidas ou execuções públicas, como foi o caso do assassinato do cidadão brasileiro Genivaldo de Jesus Santos, pela Polícia Rodoviária Federal do Estado de Sergipe.

Ou se enfrenta, com o rigor da lei, imediatamente, o fascismo brasileiro, ou nossas jovens gerações pagarão muito caro. Talvez com a própria vida.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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