Opinião
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2 de novembro de 2022
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09:10

A esperança venceu novamente o medo. O bem-viver vencerá o sofrimento psíquico? (por Rodrigo Lages e Silva)

Foto: Leandro Molina
Foto: Leandro Molina

Rodrigo Lages e Silva (*)

Um dos maiores militantes digitais da campanha Lula 2022, quem sabe o grande estrategista das redes sociais, o Deputado Federal André Janones surpreendeu anunciando que uma das suas reivindicações para o novo governo será a criação da Secretaria Nacional de Saúde Mental, dentro do SUS. Surpreendente, em primeiro lugar, pelo fato de que não exista ainda – eu sempre imaginei que já existisse, tal como existem as coordenações de saúde mental na estrutura da maioria das secretarias estaduais de saúde. Mas também que tal reivindicação venha de quem veio. Janones foi designado, talvez por ele mesmo, mas certamente com tolerância da campanha de Lula, como o responsável pelo uso das mesmas ferramentas de guerra digital que Carlos Bolsonaro vem utilizando e que levou a extrema direita ao poder no Brasil. Esse uso psicopolítico dos memes, das informações e das desinformações, do medo e da esperança, da desqualificação do adversário, entre outras táticas, foi decisivo para a vitória, ou ao menos por equilibrar o cenário de batalha. De certo modo, a noção de que política e saúde mental são indissociáveis é um paradigma já estabelecido nas psicologias clínica e social brasileiras, especialmente aquelas com influência da psicanálise e da despsiquiatrização da loucura. O Brasil é referência quando se trata de pensar estratégias sociais de cuidado em rede na saúde mental a partir de um marco teórico que compreende o sofrimento psíquico como efeito da vida coletiva em sua complexidade que inclui as forças políticas, seja em termos da composição de um plano de ideias, seja na produção das condições materiais do viver.

É preciso, porém, que o encontro entre saúde mental e política seja pensado com rigor e consistência para o outro polo, isto é, o polo da vida comum. Não apenas pensar os efeitos sociais para a saúde mental, mas os efeitos emocionais e psíquicos na vida coletiva, isto é, na política.

Muitas pessoas se perguntaram onde estava escondida na alma brasileira a intolerância que o bolsonarismo arregimentou em 2018? Assim como muitos se perguntam sobre como enfrentá-la agora que ela deixará de ser tão vocal e explícita como foi nesses últimos 4 anos. Sem dúvida que o colonialismo e o racismo têm muito a ver com isso e as reflexões que quero trazer aqui não são em substituição a esse entendimento, mas em complementaridade a ele. Apenas gostaria de dar ênfase à relação entre a saúde mental e o modo de vida centrado no consumo como um elemento central para o desafio dos próximos anos.

O grande papel do governo Lula é reincluir o pobre no circuito do consumo. Reabilitá-lo como consumidor de picanha, de cerveja, de passagem aérea, da linha branca de eletrodomésticos, da construção civil e etc. Mas o grande papel da política num sentido mais emancipatório é cuidar dos modos de vida e do bem viver de tal maneira que seja possível não consumir ou que o consumo seja suplementar à boa vida e não o fundamento dela.

Há vasta literatura crítica sobre as relações entre consumo e organização política da sociedade. Notadamente os teóricos da Escola de Frankfurt alertaram para a reorganização dos valores e das éticas de vida a partir da reificação da mercadoria e da construção de uma sociedade de consumidores. O que quero afirmar de modo mais singelo é apenas que a saúde mental precisará ser pensada para além das estruturas institucionais, mas como princípio organizador de estilos de vida. E, nesse sentido, é importante lembrar do que vivemos com o boom econômico na primeira gestão Lula e do que sucedeu na sequência dos fatos.

O acesso ao consumo tal como “nunca antes na história desse país” foi fundamental para a inclusão de um setor enorme da população, já que sabemos que os atos de consumo são indispensáveis à cidadania na sociedade capitalista. O pobre comprando geladeira, comprando material de construção para reformar sua casa foi um índice de justiça, de acesso a direitos, de pertencimento à vida pública inestimável e que precisa ser recuperado. Mas não custa recordarmos que foi em paralelo a esse consumo infraestrutural que o consumo simbólico, de ostentação, de inscrição de classe também ocorreu. A classe-média brasileira, colononizada durante décadas pelos valores estadunidenses de percepção de felicidade a partir de consumo diferencial, isto é, aquele que é além do necessário, mas serve como indicador de flerte com uma classe social superior; tudo isso era um terreno fértil para que os atos de consumo numa dinâmica veneno-remédio, ao mesmo tempo que em certa dose funcionassem como para promoção de saúde, numa dose acima funcionassem como agente de adoecimento. E tal como na sociedade estadunidense, o brasileiro nunca foi tão consumidor e tão adoecido como nos últimos anos, já não consumindo apenas objetos e mercadorias, mas antidepressivos e ansiolíticos. Ao mesmo tempo em que uma alegria com certa dose de violência é estampada em redes sociais com muito carro, muita arma, muito álcool, muita objetificação do corpo especialmente o feminino, seja do próprio corpo, e das relações eróticas em geral; enfim, tudo isso que qualquer rede social de influenciadores digitais exemplifica; também veio a epidemia de adoecimento mental.

O ódio e a intolerância da extrema-direita foram a expressão política de uma imensa infelicidade que a explosão consumista das primeiras décadas do milênio apenas aprofundou enquanto era disfarçada como ostentação inicialmente mediada prioritariamente pelo Facebook e agora pelo Instagram. Lembram-se dos inumeráveis posts com a frase da Mastercard: isso o dinheiro não compra? No fundo esse “isso” que o dinheiro de fato não compra era em geral o elemento ausente da fotografia. A garrafa de espumante na beira da praia que o dinheiro é capaz de comprar e que a foto é capaz de registrar não corresponde ao bem-estar e ao bem-viver que se pretende ostentar. No fundo, o que a foto mostra é apenas o que o dinheiro é de fato capaz de comprar. 

Por essa razão, sou muito otimista em relação ao ódio e à intolerância bolsonaristas nesse segundo mandato Lula, creio que eles realmente vão voltar para “o bueiro de onde nunca deveriam ter saído”. Mas sou menos otimista em relação ao terreno de onde eles brotaram. A infelicidade, o vazio existencial, a ausência de uma concepção – não necessariamente ideológica, mas experiencial, contextual – de bem-viver é uma ameaça política para os tempos vindouros. Enquanto Lula reabilita grandes camadas da sociedade para o consumo, eu espero que intelectuais, comunidades étnicas, movimentos sociais e artistas trabalhem para a construção de um horizonte ético em que o consumo não seja o centro gravitacional da vida. Que o verdadeiro significado da potência, nos lembra Agamben, é poder agir ou não agir. Se somos condenados à ação, não temos potência. Se o consumo é compulsório, ele não é um sinal de agência política ou de emancipação, mas um indício de desvitalização, de adoecimento.

O consumidor está sempre pronto e à mercê da sedução do objeto, seja ele o líder político, as cores de uma bandeira ou uma crença religiosa. Precisamos construir um modo de vida sustentado no cultivo, no cuidado e na invenção de objetos que sejam ao mesmo tempo belos e precários, sem a fortaleza do mito ou a inexorabilidade da fé. Objetos que precisem de pessoas saudáveis e felizes para existirem. Inventar e cuidar do campo dos objetos será também inventar e cuidar da vida comum e de nossas emoções. As coisas que verdadeiramente o dinheiro não compra são relacionais e tecidas num cotidiano compartilhado. Reencantar o campo objetal para além do consumo e povoar o mundo com relações que sustem múltiplos bem-viveres para além do dinheiro e da fé ainda que sem desprezar o dinheiro e a fé: é esse o desafio.

(*) Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação e Programa de Pós-graduação em Educação. Coordenador do grupo de pesquisa INOMINAAR – Estudos sobre aprendizagem INventiva, saberes NÔmades, devires MInoritários, cognição eNAtiva e ARtesanias docentes

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