Opinião
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12 de outubro de 2022
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09:51

O brasileirismo nas paisagens colonizadas (por Antonio Soares)

Foto: Joana Berwanger/Su21
Foto: Joana Berwanger/Su21

Antonio Soares (*)

O pau-brasil foi, talvez, a primeira commoditie deste território colonizado pelos portugueses no século XVI. Tão rentável aos colonizadores que rendeu o batismo à nova colônia. Os metropolitanos também nomearam os habitantes da colônia pelo seu ofício mais conhecido. É curioso – talvez revelador – que apenas na língua portuguesa nosso gentílico seja sinônimo de explorador de alguma atividade ou fazedor de algo, um termo com sufixo “eiro”, como padeiro, açougueiro, garimpeiro, etc. Para os anglofônicos somos brazilians, para os hispânicos, brasileños. Na língua portuguesa, nenhum outro gentílico nacional termina em “eiro”. Ao que parece, nosso gentílico é um apelido pejorativo que “pegou”.

A visão colonial sobre os habitantes deste território ainda persiste em muitos signos. O conceito de “estado nação”, que nasce a partir da modernidade, rompendo a fragmentação política medieval, pressupõe uma organização governamental sobre um território (estado), formado por uma sociedade nacional, isto é, pessoas que se consideram da mesma nação. Um conceito pensado basicamente para os povos e território da Eurásia. Observando sobre este aspecto, não podemos considerar o Brasil um estado nação na acepção original. Não sem fazer algumas ressalvas históricas que evidenciam a contradição entre o conceito de estado nação e nosso passado colonial. E a nossa história, ao meu ver, aproxima o Brasil de um “estado território”, que seria abrigaria nações diversas que o processo histórico se encarregou de fazer conviver. 

Fomos colonizados por um império decadente e escravista. Pessoas de etnias não-brancas, “pessoas de nação”, como diziam os portugueses nos documentos históricos, eram classificadas como pertencente a sub raças. Vistas como sub pessoas. Os ameríndios, os africanos e seus descendentes, sobretudo, foram sistematicamente subjugados, explorados, escravizados pelo projeto colonial português. A cultura política metropolitana inoculou durante séculos na sociedade colonial brasileira (produtora de commoditie) os fundamentos de uma sociedade escravista, patriarcal, autoritária e, por conseguinte, brutalmente desigual. Nossa independência, ao contrário dos vizinhos hispânicos, foi uma transferência de poder de pai para filho com a manutenção de um modelo de exploração baseado no trabalho escravo e monocultura. Durante séculos, ser “brasileiro” significou mais que ser servil à metrópole, ser brasileiro significou encarnar o espírito colonial de desbravador, explorador, desmatador e escravizador. Uma espécie de “empreendedor racista, patriarcal, autoritário”, um perfeito “ibérico civilizado” em meio à “paisagem selvagem”. 

O brasileirismo enquanto conceito, pode ser definido como todo este espectro de pensamentos e ações carregadas de um ideal de brasileiro construído sob a ótica colonial. O brasileirismo está para o brasileiro assim como o moralismo está para a moral. No meu entender, se configura ainda na “ideologia dominante do atual modo de produção” – como diriam os marxistas – por onde e de onde se reproduz todos os “ismos” pelos quais o Brasil se destaca no mundo. É dessa ideologia fundante que vêm e se reproduzem o racismo estrutural, a naturalização da desigualdade social, o “você sabe com quem está falando?”, a sanha fundamentalista, perversa, moralista, hipócrita (desculpem as redundâncias) que desumaniza os pobres e pretos no sistema judicial, o desrespeito para com os povos indígenas e suas terras, o desrespeito para com a natureza, o descaso com o patrimônio cultural, etc. 

Este último, que parece deslocado, é um dos mais sutis aspectos coloniais que persistem. Eu diria que por não ser reconhecida a “nação brasileira” pelas elites do País, o patrimônio cultural – assim como o natural – sofre com a ausência de pertencimento ou com o sentimento de pertencimento desterritorializado. Em outras palavras, as paisagens deste estado-território colonizado não geram pertencimento para as pessoas que se sentem nacionais de outras terras. Historicamente, para o brasileirismo raiz, as paisagens culturais e naturais, sobretudo esta última, só mereceram o reconhecimento enquanto tal quando as metrópoles assim o quiserem, quando estes reconhecimentos vieram de fora para dentro. Geralmente vistas como riquezas a serem exploradas. O que acontece hoje com o patrimônio cultural que é valorizado, em muitos casos, somente pela exploração econômica, mesmo diante das insistentes campanhas de educação patrimonial que miram no pertencimento.

Talvez estejamos presenciando a evidenciação do brasileirismo, que sequestra símbolos nacionais para suas pautas flagrante e criminosamente coloniais, de forma tão despudorada, como “nunca antes na história deste País”. Pessoas que se sentem representadas por um tipo clássico de brasileirismo, patriarcal, criminoso, autoritário, dissimulado, racista, são pessoas que se pretendem beneficiadas por anistias e licenças para cometer crimes e criminalizar as vítimas de seus crimes. 

Entretanto, podemos combater o brasileirismo com dozes cavalares de brasilidade. Muitos já reconhecem a pluralidade nacional. Muitos já sabem que somos diversos. Muitas etnias, muitos gêneros, muitos credos. A brasilidade seria esta postura de cidadania no espaço público que constrói sociedades desenvolvidas a partir do reconhecimento da potência da diversidade. Em suma, a pessoa nascida no Brasil ou naturalizada deve ser cidadã como qualquer outra pessoa nascida no Brasil ou naturalizada, sem condicionantes desumanizadoras herdadas do período colonial. 

Neste ano do bicentenário da independência, de eleições e de Copa do Mundo, talvez devêssemos nos pensar “brasilianos”, “brasilenhos” ou “brasilenses”, como nos chamam as outras nações. Talvez, estas nações, projetam mais cidadania nestes termos que o desdém colonial que o nosso gentílico carrega. Mas também podemos – e devemos – nos renovar enquanto brasileiros que somos, com muita brasilidade no coração, rechaçando todo e qualquer vestígio de brasileirismo da nossa sociedade. 

(*) Historiador e Arqueólogo, analista da Secretaria da Cultura do RS, doutorando em História pela PUCRS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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