Opinião
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18 de outubro de 2022
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06:17

Escolhas, desejo de liberdade, desobediência (Coluna da APPOA)

"O grito", quadro de Edvard Munch (Wikimedia Commons)

Robson de Freitas Pereira (*)

sonho que se sonha só
é só um sonho que se sonha só,
Mas sonho que se sonha junto é realidade
Raul Seixas [1]

Vivemos tempos intensos, paradoxais e complexos a ponto de ser impossível uma análise que sozinha tenha a pretensão (e arrogância) de uma resposta total. Claro, se queremos ser laicos e, por princípio, rejeitamos o fundamentalismo. Entretanto, justamente por isto é que a fragmentação e seu compartilhamento se tornam necessários para a construção de alguma elaboração, mesmo nas situações extremas. Afinal, já dizia John Cage (e Hermeto Paschoal) o ruído e os sons do cotidiano têm que ser incorporados para ampliar nossa capacidade auditiva e civilizatória.

Então vamos a um tópico que nos interessa dividir com outros. Quando escreveu O mal-estar na cultura, Freud cunhou uma expressão que foi traduzida como “impulso à liberdade”, ou “desejo de liberdade” (Freiheitsdrang). Ele já havia escrito algo próximo em texto anterior (Luto e melancolia) onde se referia a nossa dificuldade de elaborar a perda de um objeto amado (algo ou alguém), uma contrariedade tão intensa que resultava “numa rebelião compreensível” por esta perda e, na consequente construção de realidades que minimizassem o sofrimento. Entretanto, no livro sobre o mal-estar da cultura, Freud também considera que as perdas, os mortos, podem ‘prestar queixa’ e clamar por justiça através dos vivos, neste desejo de manifestação que pode contribuir ao nosso processo civilizatório. 

Aqui a citação: “Quando uma comunidade humana sente agitar em si um impulso de liberdade (freiheitsdrang), isso pode corresponder a um movimento de revolta contra uma injustiça ainda existente, e se tornar favorável a um novo progresso cultural, permanecendo compatível com ele[2]. Simultaneamente, ele adverte que esta revolta, em sua existência e persistência, pode dirigir-se a diversos fins. Para que tenhamos o cuidado de não concordar “com o preconceito” de que cultura é sempre sinal de aperfeiçoamento (a história do Brasil recente e antiga está repleta de exemplos). “Mas pode também ser o efeito da persistência de um resto de individualismo indômito e assim constituir a base das tendências hostis à civilização.  O impulso de liberdade se dirige assim contra determinadas formas ou certas exigências culturais, ou até contra a cultura em geral” [3]

A questão que se coloca é como preservar e perseverar neste desejo de liberdade e de avanço civilizatório, quando a palavra liberdade pode ser instrumento a favor do obscurantismo. Uma primeira observação se dirige aos “restos de individualismo indômito”. Nossa cultura está baseada no individualismo. Nosso julgamento (juízo) a respeito do que vale para nós e para nossa comunidade é a última instância. Isto é um fato; a decisão em quem votar, se cruzamos o sinal fechado ou não e mesmo se fazemos um gesto de solidariedade com alguém próximo ou desconhecido. 

A psicanálise contribui com um saber fundamental: desde os primórdios nossa constituição psíquica (incluída nossa unidade corporal) depende de uma relação com o outro; em outras palavras, até as decisões mais íntimas têm um determinante inconsciente, um espaço de mistério, ao qual não é preciso temer. Ele não atrapalha nossa tomada de posição, ao contrário, possibilita entrar em contato com os outros, os que são diferentes (e não inimigos) e, com eles construir, levar adiante um sonho compartilhado. Para isto, requer coragem de sair do isolamento e de não tomar decisões pelo medo de velhos fantasmas; pois estes “terrores diurnos” com os quais somos bombardeados, apenas buscam evitar a realização de um pesadelo. O recurso às armas letais e a liberdade de exigir a eliminação do outro (desde que não seja do meu grupo), tem prazo de validade. Logo, outro grupo mais fortalecido, virá “reclamar o ponto”, intimidando os ocupantes do antigo território. 

Assim, melhor seria que a questão pessoal fosse sempre balizada por uma crítica em forma de pergunta: “por quê me demandam isso?” ou “como estou sendo intimado a isso?”.  Seria uma forma de não se reduzir a um “animal de rebanho”. Esclarecendo; temos esta posição paradoxal de ser e, simultaneamente, não ser animais de rebanho. Dependemos alienadamente do outro semelhante e do Outro que nos habita (já dizia Carlos Drummond de Andrade). 

Imaginar uma resposta que não esteja embasada na perenidade do medo já é uma possibilidade. Hoje, parece lugar comum a convocatória para “cerrar fileiras” e combater as barbaridades que os outros fazem. Sim, não sejamos ingênuos, os criminosos estão aí, agindo a céu aberto. Mas todos eles são de carne e osso. A iniquidade também; está nas ruas, nas telas dos aplicativos.  Basta não desviar o olhar, nem se fazer de indiferente ou surdo. Reconhecer os limites é exercício de responsabilidade. A partir daí, desejamos. 

Espero que esteja claro que não se trata de uma oposição entre indivíduo x sociedade. Trata-se de uma articulação inseparável entre dois elementos regidos pela linguagem que nos humaniza. Retira-se um deles e adeus civilização. Este é um campo de tensionamento, de permanente conflito. Mas atenção, há discursos que seduzem e controlam, justamente por prometer soluções rápidas /mágicas. Há coisas urgentes, ações necessárias para fazer limite ao que cresce como obscurantismo. Porém, não existe mudança sem compromisso, tampouco sem reconhecer que o impulso destrutivo está atrelado à condição humana. Há uma diferença entre fantasiar a morte do outro e ir às vias de fato e ficar impune. A intimação a que nos referimos acima tenta intimidar, aludindo aos terrores mais íntimos; afinal a incerteza e angústia estão na ordem do dia. 

Melhor imaginar que enquanto houver outros que se fazem as mesmas perguntas, compartilham os sonhos sem responder muito rapidamente sobre os demônios que habitam os outros (indiferentes porque não tem rosto), há uma chance de sustentar a transformação permanentemente e adiar o fim do mundo a cada dia ou noite enluarada, de todas as estações.

Notas

[1]Prelúdio”, álbum Gita, 1974.

[2] Freud. O mal-estar na cultura, pag 98, ed. LPM, 2010

[3] Idem

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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