Opinião
|
20 de outubro de 2022
|
06:40

Debates televisivos, o MMA antidemocrático e o cuidado para o último confronto (por Sandra Bitencourt)

Lula procurou falar sempre Bolsonaro, no debate da Band (Band/Reprodução)
Lula procurou falar sempre Bolsonaro, no debate da Band (Band/Reprodução)

Sandra Bitencourt (*)

Uma apresentação de pugilato. É assim que o jornalismo continua cobrindo debates presidenciais, desde 1960, aponta o professor Wilson Gomes. Para o pesquisador, tudo mudou na comunicação, na política e na esfera pública, menos o enquadramento do debate como uma luta de boxe, com rounds, com pontos, com tudo. Eu diria que o box é um esporte com regras mais limpas. O que vemos nos enfrentamentos televisivos permite golpes abaixo da linha da cintura, pé no peito e mata leão. Seria bem mais um MMA, em que o jogo a cada rodada favorece quem consegue aplicar o golpe mais duro, e isso pode incluir lacração e mentiras bizarras. A verdade tem pouco espaço nesse espetáculo.

Os debates televisivos perderam o rumo como espaço para discussão, exposição de projetos e comparação de habilidades de convencimento e síntese. São mais espetáculos de desinformação, onde o espaço de credibilidade é utilizado para enganar e validar memes que circulam em redes subterrâneas. Sob holofotes, considerando o jornalismo como instância de verificação da verdade, o que surge é uma sucessão de mentiras fabricadas que assim ganham o estatuto de realidade. A política perde espaço nesse palco que mimetiza confrontos de interesse público, mas na verdade favorece a manipulação, semeia pânico moral, insulta, falseia e confunde.

A maior inovação até agora foi o candidato de extrema direita ter levado para o horário nobre da Globo uma Fake News em carne e osso. O Padre Kelmon surge como um meme em 3D, repetindo todas as mentiras de pânico moral e religioso, duplicando o tempo e a estratégia do presidente e cumprindo a missão de aplicar os golpes mais baixos. Uma violação da proposta, das regras e do propósito do jornalismo como fonte de esclarecimento para a decisão do eleitor. A emissora pouco fez, além do puxão de orelhas de um Bonner professoral, pedindo que escutasse o “coleguinha” em silêncio. Não puniu com perda de tempo, não denunciou a fraude, não conteve abusos e nem desmentiu os absurdos.

É importante ter em conta que os candidatos da extrema direita reproduzem na televisão sua lógica e estética bem sucedidas nas redes digitais. Simplificam e entregam, ainda que de modo tosco, as mais diversas teorias da conspiração. Essa “verdade revelada” que simula um acontecimento e explica de modo singelo e satisfatório as principais indagações para diferentes crises. Como defende Ignacio Ramonet, vivemos a era do conspiracionismo. A ideia de complô sempre existiu, mas é nova a conspiração como método através de narrativas delirantes e extremamente organizadas para explicar fenômenos históricos pela existência de forças superiores e secretas. Isso satisfaz exigências de muitos atores políticos e sociais.

É altamente eficaz selecionar certos grupos, dependendo da época, para culpar por eventuais desastres políticos, econômicos e sociais. Podem ser minorias étnicas, o comunismo ou até, como sabemos, o STF. É uma manobra de manipulação para modificar a interpretação histórica dos acontecimentos. Como tal, essa manobra precisa ser denunciada e neutralizada.

A Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD), que interliga projetos e instituições de diversas naturezas (Universidades, agências, coletivos, Observatórios, movimentos sociais) que trabalham e contribuem de alguma forma para combater o mercado da desinformação que floresce no Brasil, vem discutindo sobre a necessidade e viabilidade de fazer checagem em tempo real nos debates televisivos.

Seria razoável que as emissoras chamassem empresas de Checking para comprovar tudo em tempo real. Uma das dificuldades é que cada campanha iria reivindicar a sua agência para checar. Também as emissoras perderiam protagonismo. No entanto, qual a contribuição à democracia de um produto midiático que permite validar desinformação? Além disso, a leitura posterior de checagens não é um hábito que alcance boa parte da população, bem mais é um hábito vinculado a elites que lidam com a informação (jornalistas e pesquisadores).

Como então se preparar para enfrentar uma estratégia bem sucedida de manipulação e satanização dos adversários, através de criação de falsas barreiras (o STF não me deixa governar) e de ameaças inexistentes (Lula vai fechar as igrejas), usando do insulto e dos números falsos para recortar e reverberar depois?

O último embate pode ser decisivo. É preciso ter consciência que os detalhes serão determinantes, que a luta se dá na lama e que é quase impossível lidar com esse esgoto sem sujar as mãos. Ou seja, em meio à guerra cibernética (que é desfavorável ao campo progressista) esse acontecimento midiático é um elemento que vai demandar muito mais do que gestos fidalgos e tiradas corteses. É necessário calibrar muito bem a estratégia discursiva, socavar as fraudes que constituem o adversário, revelar mentiras e armações.

Desde setembro de 1960 quando mediados por Howard K. Smith, nos estúdios da WBBM-TV, 70 milhões de americanos assistiram o primeiro debate televisivo da história entre o senador John Kennedy e o vice-presidente Richard Nixon, os confrontos televisivos têm sido essenciais na disputa cada vez mais midiática para os projetos políticos. Mas as novas formas de comunicação e de interação política exigem outros formatos. É preciso encontrar um modo de neutralizar o jogo sujo. “A descoberta consiste em ver o que todos viram e em pensar no que ninguém pensou”, nos ensina o bioquímico húngaro, comunista, vencedor do Nobel de Medicina.

(*) Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS, membro do Conselho do Observatório da Comunicação Pública e Diretora de Comunicação do Instituo Novos Paradigmas (INP). 

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora