Opinião
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9 de outubro de 2022
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20:20

A Brasil Paralelo e o nacionalismo cristão (por Fernando Nicolazzi)

Foto: Joana Berwanger/Su21
Foto: Joana Berwanger/Su21

Fernando Nicolazzi (*)

“O fascismo legitima a si mesmo em nome da identidade nacional baseada na unidade e na continuidade da história”.
Shoshana Felman

Poucos são os textos que, sem mencionar uma vez sequer o nome da Brasil Paralelo, conseguem explicitar tão bem o que é o projeto político da empresa. Em um artigo intitulado “Reeleição de Bolsonaro impulsionaria radicalização de extremistas cristãos”, publicado na Folha de São Paulo no último domingo (08/10/2022), o teólogo Ronilso Pacheco oferece algumas ideias fundamentais para entendermos a ideologia que move os interesses da empresa e de parte considerável seus seguidores.

Segundo Pacheco, “o nacionalismo cristão é uma ideologia política de extrema direita que se vale, quase sempre, de uma gramática religiosa para justificar sua visão de mundo”. No caso da produtora, essa gramática está embasada em certas formas de uso político do passado que servem como subsídio para justificar e comercializar determinada visão de mundo. Nesse sentido, não é fortuito o fato da história ocupar um lugar preponderante e, diria mesmo, litúrgico nos produtos oferecidos pela empresa.

Isso se torna particularmente visível na série Brasil: a última cruzada, que começou a ser veiculada em 2017 e hoje, no contexto das comemorações do bicentenário da independência, foi relançada junto com um pacote que envolve a publicação de um livro impresso e ameaças de se levar seu conteúdo para as escolas brasileiras. Como afirmou um dos proprietários da produtora, trata-se da “serie mais emblemática” que já produziram. Portanto, é nela que a essência da sua visão de mundo é manifestada.

Em linhas gerais, três são seus principais eixos norteadores. Em primeiro lugar, uma nostalgia em relação ao contexto do Brasil monarquista e escravocrata do século XIX, encarado como momento de estabilidade política e ordem moral. Em segundo, uma perspectiva fundamentalmente cristã da história, marcada por um eurocentrismo primário e pelo elogio do colonialismo português. Por fim, mas não menos importante, a defesa de um ideário econômico que projeta para o passado uma racionalidade neoliberal contemporânea. 

Esses três eixos são articulados entre si a partir do elemento central que orienta as ações políticas da empresa: uma ideia excludente e limitadora de pátria, definindo os traços de um nacionalismo cristão que, ainda nas palavras de Ronilso Pacheco, constitui-se “como um conjunto de mitos, tradições, símbolos, narrativas e sistemas de valores que trabalham principalmente para a fusão ou o domínio do cristianismo na vida social”.

Vejamos alguns exemplos de como isso transparece na referida série. Antes de mais nada, o próprio título já é bastante explícito do que se trata: uma “cruzada” que, no caso, seria a última. A escolha do título não é aleatória ou isenta de implicações importantes. A posição assumida pela empresa significa para ela uma missão civilizacional. Colocando-se como cruzados em uma guerra cultural, inventam os infiéis contra os quais pretendem guerrear. Entre eles, os mais visados são os professores e pesquisadores de história, encarados como inimigos que devem ser derrotados.

Como consequência disso, o mundo para a Brasil Paralelo perde em complexidade, tornando-se tão somente um lugar dividido entre bons e maus, entre aqueles comprometidos com a família, a pátria e o cristianismo, e aqueles que supostamente estariam pregando “ideologias perversas [que] contaminaram o imaginário popular, causando danos incalculáveis em jovens, que hoje estão perdidos e sem norte”, como afirma em tom moralista um dos proprietários, no segundo episódio da série.

Nesse sentido, vale atentar para a escolha estética que orientou a criação da vinheta de Brasil: a última cruzada. Mimetizando as aberturas de duas outras séries televisivas, The crown e Game of Thrones, a Brasil Paralelo buscou uma forma de engajamento a partir da simplificação de referências culturais conhecidas: o apelo monarquista e a visão dicotômica e maniqueísta do mundo. Além disso, as imagens que remetiam ao imaginário do Império brasileiro (esfera armilar, cruz da Ordem de Cristo, ramos de tabaco e café), eram acompanhadas por um canto cristão medieval, Da pacem domine, conhecido como hino dos cavaleiros templários.

É sabido que a base ideológica da narrativa histórica da série se assenta no dogmatismo do youtuber Olavo de Carvalho. Como já confessado por um dos proprietários, foi ele que orientou a empresa a transformar seus produtos em conteúdos não apenas de militância política, mas, sobretudo, de uma batalha fundamentalista contra o que consideram como o “mal”, a saber, uma ideia de sociedade amparada em princípios de solidariedade, diversidade e cidadania.

Ao longo dos episódios, vemos sendo destiladas as características desse nacionalismo cristão tão bem analisado por Ronilso Pacheco. Desde a defesa do armamentismo, por um delegado de polícia e autor de livros em defesa da família cristã, até cenas grotescas de preconceito étnico, como aquela em que Leandro Narloch sugere que as sociedades ameríndias teriam “emburrecido” por conta de um suposto isolamento social. 

Esse ataque às diferentes culturas indígenas se ampara na ideia eurocêntrica de que a civilização Ocidental seria o “ponto mais alto a que a humanidade chegou até agora”, como afirma Rafael Nogueira, um dos principais nomes da série e nomeado presidente da Biblioteca Nacional pelo governo Bolsonaro, em 2019. Não custa lembrar aqui que o ex-ministro da educação Abraham Weintraub, convidado em outra série da empresa, já esbravejou em uma famosa reunião ministerial que odiava o termo “povos indígenas”. “Só tem um povo nesse país”, continuou ele em seu ataque, “é o povo brasileiro”.

Portanto, é em nome desse nacionalismo obtuso e excludente, embebido em um perverso moralismo (e armamentismo) cristão, que a história do Brasil é contata pela Brasil Paralelo. Tudo isso em nome da restauração da pátria e do resgate do que consideram como a única história possível de ser contada, em uma cruzada que seria um “passo em direção à retomada da nossa verdadeira cultura, a nossa verdadeira missão como brasileiros”. 

Voltando à interpretação de Ronilso Pacheco, é significativo o fato de que “o nacionalismo cristão, como ideologia fascista, cria e mantém firme a ideia de que seus inimigos querem livrar o país das pessoas honestas, civilizadas, trabalhadoras, de bem, cristãs”. Nesse sentido, a mobilização de afetos tão variados, como o amor à pátria e o ódio aos seus supostos inimigos, é estratégia fundamental para a disseminação dessa  bandeira nacionalista. Como afirma Pacheco, “não se trata de teologia ou hermenêutica bíblica, mas de ideologia política”. 

Outro ponto destacado pelo autor é importante de ser mencionado. Para ele, “o projeto da ideologia do nacionalismo cristão [é o] de interditar o alcance da crítica, da diferença e da defesa da diversidade em uma sociedade desigual”. A partir disso, fica fácil compreender por que a produtora ataca de forma tão intensa as instituições de ensino e pesquisa, bem como os profissionais que atuam nelas. As formas de adesão de seu público consumidor pressupõem, antes que a reflexão crítica, o compromisso de fé com aquilo que é oferecido. Daí sua ojeriza pela consciência crítica defendida por autores como Paulo Freire.

Várias pesquisas acadêmicas dão embasamento documental para demonstrar as afinidades entre a militância política da Brasil Paralelo e o bolsonarismo, encarado aqui como uma cultura política que transcende a figura de Jair Bolsonaro. O primeiro turno das eleições mostrou a consolidação dessa cultura política que é, em sua essência, violenta e antidemocrática. 

A sobrevivência de qualquer princípio que busque garantir condições mínimas para salvar o que resta de nossa democracia passa necessariamente pelo combate contra esse tipo de barbárie social. O voto é um instrumento fundamental nesse combate, consumir história honesta e de qualidade é outro. E o tempo que resta para isso é pouco.

(*) Historiador

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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