Opinião
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26 de agosto de 2022
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14:49

Precisamos cuidar do ‘tiozão do pavê’ (por Rodrigo Lages e Silva)

Ato em defesa da democracia na Faculdade de direito da UFRGS. Foto: Luiza Castro/Sul21
Ato em defesa da democracia na Faculdade de direito da UFRGS. Foto: Luiza Castro/Sul21

Rodrigo Lages e Silva (*)

A esperança poderá ser o afeto que vencerá a eleição, mas é da alegria que vamos precisar enquanto crítica positiva para os tempos vindouros. Não a alegria catártica de uma liberação provocada, mas aquela que tece e modula as relações cotidianas e coletivas. 

É claro que haverá júbilo e festa numa esperada vitória do campo democrático e a sensação de alívio por deixar o fascismo para trás, de voltar a pensar um Brasil com segurança alimentar e respeito aos direitos humanos. Sim, amanhã vai ser outro dia e estamos nos guardando para quando o carnaval chegar. 

Mas a experiência do golpe de 2016, passando pela eleição do genocida não foi um acontecimento abrupto, foi um processo gestado nos afetos tóxicos que estruturam a sociedade brasileira, patriarcal, patrimonialista e escravocrata. 

A alegria de que vamos precisar no grande processo de cura que vai iniciar com o afastamento do agente nocivo, atualmente ocupante da presidência da república, é uma alegria que se apresenta como propriedade emergente da vida comum. Aquela alegria já comentada por Bakhtin em suas análises sobre o carnaval na Idade Média e sobre a obra de Rabelais, uma alegria instruída, atenta à dor, às injustiças e às violências, mas nem por isso uma alegria ressentida e rancorosa. O linguista russo nos ajudou a perceber a irreverência e sagacidade das festas populares que articulam das maneiras mais criativas: a crítica negativa sob a forma de denúncia e da ironia; e a crítica positiva sob a forma da encenação de um mundo em que os valores populares emergem em toda a sua dignidade, sem serem pensados apenas como “anti”, ou como “contra” algo, mas em sua autenticidade de experiência compartilhada frente à qual os valores do opressor figuram como patéticos e mesquinhos. O nosso carnaval é um grande exemplo de como os valores das culturas indígenas e afrodiaspóricas, da roda, da rua, do tambor, do ritmo, da síncope, do ubuntu sabem falar da dor sem perder a alegria do horizonte.

Mas um dos efeitos nocivos da sociabilidade mediada por algoritmos e da precarização dos espaços públicos, especialmente dos gratuitos, é o acirramento da vida atomizada, da convivência digital, da psicopolítica – como nomeou Byung-Chul Han – que faz a gestão das semioses emocionais para produzir tendências comportamentais. E o que temos visto é uma silenciosa crise dos afetos, que já configura uma outra pandemia que é a do sofrimento psíquico. Silenciosa porque muitas vezes indistinguível da vida normal. É um sofrimento funcional, na maioria das vezes. Vejo como um fenômeno muito sintomático dessa atmosfera de tristeza (depressão) e mal-estar (ansiedade) generalizada, a multiplicação de cômicos estilo stand up. E não é coincidência que sejam  quase todos identificados com a direita. Não creio que isso deva ser atribuído ao formato em si, mas ao lugar narrativo preferido nesse gênero cômico que é o do pensador iconoclasta, supostamente não cooptado por nenhuma ideologia, livre para exercer seu pensamento sem as contingências das outras almas menos iluminadas. Esse narrador, que está finalmente entrando em desuso na literatura,  é o rescaldo da síntese entre o romantismo dos dândis da aurora do capitalismo com o empreendedor de si do século XXI. Ele está acima do bem ou do mal, ele pode ser misógino, machista, classista, racista, capacitista, seja o que for, porque é sempre um valor maior que ele está defendendo. Esse valor é a liberdade de pensamento e de expressão. Pensamento e expressão nesse caso sendo concebidos como coincidentes com sua individualidade e fruto apenas do seu gênio, diferentemente, claro, de todas as outras pessoas, que pensam e se expressam de acordo com a maioria, e que seriam determinadas por movimentos de massa.

O humor desse stand up pequeno-burguês é do riso fácil e imediato. O expectador ri porque identifica ali mesmo a possibilidade de uma vida mais além de todas as concessões que impõe sua rotina medíocre, por alguns segundos ele está acima da vida ordinária e regozija no Olimpo em que só vivem os artistas, os bilionários, os famosos e, paradoxalmente, o comediante que via de regra não é nada disso, mas consegue habitar pela comédia um lugar ambíguo de: sendo pobre não sentir e não pensar como pobre; sendo feio, ser consciente da própria feiura e por meio dessa consciência, tornar-se bonito aos olhos dos outros; sendo casado, ser tão consciente das limitações do casamento que possui a leveza e a autonomia que tinha quando solteiro.  O bom humorista de stand up faz funcionar essa figura do narrador iconoclasta porque pela qualidade do seu texto, seduz o expectador a compartilhar naquele pequeno instante uma sensação de liberdade. O expectador ri muito, em que pese sua vida cotidiana ecoe uma tristeza abissal. 

O tio do pavê, por sua vez não consegue esse mesmo efeito com suas malfadadas piadinhas, ele não produz nenhuma sensação de descolamento do ordinário ou de liberdade, o que não significa que ele desista de tentar. É que ele está imerso na perspectiva de mundo do opressor, patética e mesquinhamente buscando uma ressonância afetiva, desesperadamente fazendo gestos em direção a um coletivo que os grupos de WhatsApp não conseguem ser. O tio do pavê não tem a capacidade metalinguística do humorista de stand up. Ele não sabe nomear a mediocridade e a estupidez que o cerca, no entanto, não deixa de percebê-la e de com ela sofrer. E assim ele oscila entre o humor duvidoso e solitário e a cólera e intolerância públicas.

Quando falo que precisamos cuidar dele, esse cuidado que proponho deve ser entendido na ótica de Bernard Stiegler, isto é, como cuidado do meio no qual nos subjetivamos para evitar que sejamos destinados à estupidez. Cuidar aqui não é ocupar-se do personagem especificamente, mas do contexto social, técnico e cultural sob o qual todos nos formamos como pessoas. É preciso cuidar do ambiente em que nos constituímos em conjunto uns aos outros, de modo que a experiência coletiva não tenha que ser vivida necessariamente como frustrante e como em oposição à ascese individual. De modo que a comédia faça composições com a busca por um mundo melhor e não com o desespero por um riso entorpecente.

Ocupar-se do futuro por meio da alegria será tão importante como ocupar-se do passado por meio da coragem. É certo que teremos de ter políticas de memória e de responsabilização que nos impeçam de cometer os mesmos erros que estamos cometendo desde a invasão europeia em terra brasilis, isto é, o esquecimento e o recalque das espoliações e das violências que fundam essa nação. O que tão somente estou propondo é que nós do campo democrático e de esquerda não descuidemos da alegria, não descuidemos da crítica positiva de cuidar do mundo no qual queremos viver. 

O Brasil vai precisar da tessitura de um plano comum em que possamos ser ao mesmo tempo conscientes das dores que marcam nosso projeto como nação, mas também apresentarmos dignamente as qualidades da nossa vida comum que não são apenas massificantes e mediocrizantes, mas também cheia de forças, de imagens, de ritmos, de afetos que nos permitem construir sentidos compartilhados para o viver.

No próximo governo democrático que está por vir, nós do campo da esquerda temos de lutar pela segurança alimentar, pelos direitos humanos e por tantos outros direitos sociais, mas temos de saber integrar nessa luta um traço da alegria, de amorosidade, de encanto, de utopia, e por isso as políticas de educação e de cultura precisarão ser consideradas políticas de base, absolutamente estruturais, tão fundamentais como alimento e como a democracia, pois é o cuidado com o coletivo que a cultura e a educação promovem que dão a todas as outras políticas uma sustentabilidade a longo prazo e que tem potencial para afastar as infelizes reaparições do fascismo.

(*) Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação e Programa de Pós-graduação em Educação. Coordenador do grupo de pesquisa INOMINAAR – Estudos sobre aprendizagem INventiva, saberes NÔmades, devires MInoritários, cognição eNAtiva e ARtesanias docentes

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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