Opinião
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16 de agosto de 2022
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07:04

O jardim das suculentas e o sincretismo criativo da clínica psicossocial (Coluna da APPOA)

Jardim terapêutico suspenso (Arquivo pessoal)
Jardim terapêutico suspenso (Arquivo pessoal)

Volnei Antonio Dassoler (*)

“Que a força do medo que tenho
não me impeça de ver o que anseio
que a morte de tudo em que acredito
não me tape os ouvidos e a boca
pois metade de mim é o que eu grito
a outra metade é silêncio”

(Oswaldo Montenegro, Metade)

 Num país de extensão continental como o nosso, com diferenças regionais significativas e com desigualdades históricas e seletivamente cultivadas, definir prioridades para um projeto de governo para a nação constitui uma tarefa complexa atravessada por interesses que nem sempre visam ao bem comum. Assim, a definição de qualquer planejamento estratégico deveria resultar de uma interpretação dos indicadores sociais sob a perspectiva do bem público como um direito e não como um favor, especialmente em relação aos segmentos mais carentes e excluídos da população: direito de que suas demandas coletivas essenciais sejam acolhidas e respondidas por meio de atos concretos que deem conta da função de amparo social atribuída ao Estado e assumida por ele. Neste cenário, tópicos como saúde, educação, segurança e emprego costumam aparecer no topo das intenções e servem como orientadores das políticas públicas de qualquer ente federado. 

Nos dias de hoje, qualquer mapeamento mais minucioso de expectativas quanto às ações do sistema público evidencia a crescente demanda de cobertura de saúde mental. Embora se presuma a abrangência mundial deste fenômeno, por conta dos efeitos da pandemia – perdas, luto, isolamento, confinamento social e medo –, a sua abordagem no âmbito público da realidade brasileira deve ser sensível às diretrizes e princípios da política nacional de saúde mental que orientam as práticas dos serviços de natureza pública. 

Localizamos, nas décadas de 1980 e 1990, como marcos teóricos e políticos no processo de reestruturação da assistência, a 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), a 1ª (1987), a 2ª (1992) e a 3ª (2001) Conferência Nacional de Saúde Mental e a promulgação, ainda em 2001, da Lei n.º 10.216, de alcance nacional, que normatiza um novo modelo assistencial derivado da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Esta articulação buscou dar uma outra resposta social, de estrutura moebiana e com contornos políticos e clínicos, à loucura, a partir de uma visão de mundo que não operasse pela exclusão e pela desumanização. Tal movimento se desdobrou e positivou o significante psicossocial como fundamento das discussões mais abrangentes macro relativas à formulação das políticas públicas, bem como na instância das novas modalidades clínicas. A adoção do viés psicossocial assume um papel estratégico no afastamento da figura da doença e na expansão do campo de práticas e de saberes não mais limitados aos saberes tradicionais da medicina e da psicologia. Este contexto ampliado acolhe um conjunto complexo e múltiplo de conhecimentos e formas de cuidado pautados pela interdisciplinaridade e singularidade em substituição às intervenções normatizadoras, dessubjetivantes e socialmente desconectadas, expondo, frequentemente, disputas e tensões decorrentes da tentativa de hierarquização e domínio ideológico entre os diferentes campos de conhecimento.

Essa abertura e ampliação do cuidado reconhece valor na diversidade das demandas dos usuários e do saber que eles portam acerca daquilo que os afeta. Na mesma medida, precisamos estar atentos à associação e ordenação dos impasses, dos sintomas transitórios e das experiências difíceis da vida como ela é em categorias psicopatológicas pelo risco de esta taxonomia tornar-se uma forma de captura do sujeito pela psicologização e psiquiatrização da vida. Este fenômeno produz o efeito – involuntário ou não – de favorecer a identificação do sujeito com uma determinada categoria nosológica e, em consequência, promover seu afastamento tanto da relação com aquilo que o acomete quanto da sua necessária participação nas possíveis soluções.

Quanto mais ficarmos capturados pela ideia de saúde mental como ordem e estabilidade, mais observaremos a proliferação diagnóstica, justamente porque não é possível suprimir a condição sintomática que, em alguma medida, constitui cada um de nós. A foto que ilustra esta coluna é do Jardim Terapêutico suspenso, produção de plantas suculentas de uma usuária vinculada ao Santa Maria Acolhe, serviço de atenção psicossocial. O que inicialmente pareceu ser um gesto de agradecimento pelo acolhimento recebido foi revelando, aos poucos, o caráter criativo e simbólico que associa sujeito e cultura e os incluem nas intervenções clínicas.

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). [email protected] 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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