Opinião
|
23 de agosto de 2022
|
07:59

Chamas da democracia ou coragem para despertar a primavera (Coluna da APPOA)

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Robson de Freitas Pereira (*)

Eu, tu e todos no mundo/
no fundo, tememos por nosso futuro
Gilberto Gil [1]

Aqui no sul do país é costume dizer que passando agosto vencemos mais um ano. Estamos quase lá, falta pouco. Também para as próximas eleições. Espaço para esperanças e incertezas. Um poeta escreveu certa vez: “até lá, observe-se/ a mais estrita disciplina. A sombra máxima/ pode vir da luz mínima” [2]. As palavras poéticas nos alertam; é preciso estar atentos e fortes, em constante aprendizado, se desejamos verdadeiramente uma mudança. Esta que implica transver (no vocabulário de Manoel de Barros), ver, rever, ocupar-se da repetição, buscando as diferenças que nos ajudam a enfrentar a incerteza. Persistindo na chama acesa para combater as chamas que ameaçam a democracia. Porque a casa queima, um país queima, a chama que cega transformou-se: “mudou de forma e natureza, fez-se digital, invisível e fria, mas justamente por isso está ainda mais próxima, está ao nosso lado e nos circunda a todo instante” [3]   Há muitos sentidos para a expressão de que nossa casa “está queimando”; onde casa pode ser entendido como nosso lar, cidade ou mesmo nosso país (na Amazônia os incêndios são reais). Alguns não veem, outros se angustiam com o que estão vendo e vivendo.  Fazem perguntas, ensaiam respostas para tentar dar conta e projetar um futuro.

Como combater, quais as armas adequadas nestes tempos angustiantes de hegemonia financeira e algoritmos tecnológicos? Com as armas que cada um tem, herdou, se formou, se transformou. “De amor armado”, dizia Thiago de Mello. Sabemos que as soluções são contingentes, afinal só a morte é condição definitiva. Mas, por isto mesmo apostamos na possibilidade de mudança. Viver é estar em movimento. As pessoas podem mudar de posição; admitir uma escolha equivocada não é pecado, tampouco humilhação. 

Uma tarefa urgente: temos que reconhecer nossa dificuldade de aceitar as diferenças. Para ultrapassar o mote “O brazil não conhece o Brasil,” como dizia a canção popular corroborando a percepção de que neste momento podemos estar nos sentindo estrangeiros em nossa própria terra. Depois de três anos enfrentando as pandemias, as ruas e os outros estão diferentes. O que pode levar a uma intensificação do mal-estar. Parece que temos que lidar com o fato de que se Instalou definitivamente a cisão/divisão entre o que consideramos conhecido e com o qual temos identidade e aquilo que rejeitamos por não parecer igual (“narciso acha feio o que não é espelho”). Por suas características primárias esta posição é fratricida – na imagem do espelho só tem lugar para um. Daí a importância da cultura para subverter as tentativas de hegemonia destas forças destrutivas. Cultura não é supérfluo; sem ela a barbárie pode imperar. Aprendemos nos últimos anos, às vezes com um custo altíssimo, que as pequenas diferenças podem levar a conflitos fratricidas. Também aprendemos que o mundo não se resume a nossa vizinhança, ou aos que pensam exatamente igual ou torcem pelo mesmo time. Reconhecer isto é o fundamento da construção democrática. Democracia não é algo instituído de uma vez por todas. Precisa de nosso compromisso permanente. Para isso, precisamos de coragem. Exemplo: outro dia os jornais noticiaram que a função de mesário nas eleições poderia estar se transformando em exercício de risco. Mesmo com o risco, todos os entrevistados (mesários de eleições anteriores) disseram que se fossem convocados, aceitariam a responsabilidade, fazendo valer o verso “verás que um filho teu não foge à luta”.

Como se herda uma coragem? É pergunta complexa; entretanto a psicanálise nos ensinou que um dos pilares dessa posição é a sustentação da memória. Os fragmentos que cada um revê, transvê em sua própria história. Sim porque nossa história, esta da qual nos apropriamos, não se apresenta como algo linear e cheia de fatos grandiloquentes. Está repleta de lacunas, intervalos que preenchemos com fatos prosaicos ou traumáticos, ambos importantes. Junto com este reconhecimento, a persistência de um desejo que justamente por não termos garantia de futuro é que ele merece nossa contribuição hoje. E esta persistência não se afirma na solidão. A responsabilidade é singular, mas a tarefa é coletiva. Voltando a história, democracia desde sua invenção foi um campo de tensões. Mesmo na Atenas do século V a.c. foi considerada um insulto às oligarquias. As mudanças não são bem recebidas; frequentemente se enfrentam com tentativas de retorno à ordem antiga, buscando eliminar a insegurança, o medo do novo. O trabalho é de longo prazo e não tem validade determinada. Assim, as ruínas do passado podem servir para elaborar a reconstrução do presente.  Memória da pele, relatos da vida, do que vivi e da primavera que ainda não vivi, mas pode ser sonhada e compartilhada.

ps: falta pouco também para completar o bicentenário. Independência  e/ou morte é um tema importante para ser elaborado. 

[1] Gilberto Gil, Extra , canção do álbum homônimo de 1983 

[2] Paulo Leminski, Distraídos venceremos, 1987.

[3] Quando a casa queima- sobre o dialeto do pensamento. Giorgio Agamben. Ed. Âyiné.2021.

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora