Opinião
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27 de julho de 2022
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14:46

Relato da última madrugada em Porto Alegre (por Alass Derivas)

A foto é ilustrativa, um registro do Encontro Nadional das Teias dos Povos, em maio de 2022, no Assentamento Terra Vista, Bahia. Alass Derivas (@derivajornalismo)
A foto é ilustrativa, um registro do Encontro Nadional das Teias dos Povos, em maio de 2022, no Assentamento Terra Vista, Bahia. Alass Derivas (@derivajornalismo)

Alass Derivas (*)

Na encruzilhada, a mensagem vinda no dia anterior, o alerta de Exu, saltou aos olhos.

À meia noite e meia eu e minha parceira voltávamos de bicicleta pela Rua Lima e Silva, atentos e distraídos, cantando, quando quase na Esquina com a Rua da República vimos uma confusão. Cinco ou seis homens chutavam outro homem no chão. Paramos as bicicletas no ímpeto e pedimos para pararem o linchamento. Imediatamente os homens se voltaram contra a gente. “Vão defender ladrão? É ladrão!”. Gritaram, em clima de ameaça. Até então eu não sabia se era uma briga de rua, eram seguranças, traficantes. Não sei quem eram, nem posso afirmar, mas diversos. Um deles me olhando o tempo todo com a mão na cintura, sob a camisa. Dois ou três vestidos com a camiseta da lancheira da esquina. Na confusão, gritei para o cara que tava apanhando ir embora, vazar. Se enrolou, catou umas moedas no chão, provavelmente bêbado ou grogue da surra, mas foi. Os homens seguiram com xingamentos dispersos a nós, caminhando paralelamente e falando. Insistindo que o cara era ladrão, perguntando se a gente queria confusão.

Quando estávamos para arrancar de bicicleta, na Esquina da República com a Lima e Silva, falei em altura não gritando, mas para ouvirem, que, independente do que aconteceu, cinco contra um no chão era covardia. Vieram todos na minha direção e sabia que ali chegou no limite, não dava mais, ou eu era eu que ia para o chão. Arrancamos na sintonia e vazamos entre xingamentos.

Escorado na entrada de uma farmácia, 100 metros adiante, um homem comentou calmo, mas raivoso, nos olhando, enquanto passávamos: “defender ladrão… Leva para casa, então”.

Como ver uma situação dessa e não se colocar? Cinco caras linchado alguém no chão?

Depois de nos afastarmos, nós acolhemos e começamos a avaliar a situação. Nos colocamos e seguiremos nos opondo em situações de violência extrema como essa. Só depois, bem depois, que minha parceira me apontou o adesivo Fora Bolsonaro no peito. Eu não lembrava. Me liguei que eu estava o prato cheio na madrugada. Cabelo comprido, barba, calça peruana. E este adesivo no peito. Assim que nos afastamos de bicicleta, comentamos sobre o apoio que não recebemos de ninguém, os que passavam e dos restaurantes da volta. Nosso grito não ecoou. Pelo contrário. Fomos mal vistos por se opor. Conversamos se nos sentimos em risco ou não. Concordamos que não tinha como não se colocar, mas cada vez mais conscientes de avaliarmos na hora os limites e se proteger. Situação tensa! Mas consideramos que nos saímos bem. Não nos machucamos e o cara escapou de um espancamento maior.

Acredito que é preciso termos a consciência que vamos cada vez mais viver situações de violência nas ruas. Que, avaliando os riscos, precisamos nos opor.

Acredito que é preciso termos nítido, como ponto de partida, que não vai ser eleger o Lula, nem qualquer senador, deputado, governador que vai interromper, “varrer” esta violência cada vez mais presente no cotidiano. E que em territórios, por exemplo, como a favela da Maré no Rio, Vila Elza em Viamão, em territórios indígenas Xokleng, Kaingang, Pataxós, Yanomami, sempre estiveram presentes. Ultimamente é de forma mais intensa sim. É provável que situações assim arrebentem tiroteios. Acirramento que tem a ver com o Bolsonarismo, mas que tem a ver com a ascensão do fascismo no mundo, com uma etapa do capitalismo (o neoliberalismo) que está aí para nós trucidar.

Não vão ser salvadores que nos livrarão da violência das armas, do fundamentalismo religioso, do tráfico, das milícias, dos milicos torturadores e sugadores, da guerra às drogas, dos latifundiários ladrões de terra, das big techs que compram ouro ilegal de terra indígena, das multinacionais que exportam minérios, madeira, gado, soja explorados em terras indígenas. E que estão de olho nas nascentes dos rios e nos aquíferos. Não vão ser salvadores que nos livrarão do patriarcado, do racismo, dos genocídios.

A realidade está posta. Só não vê quem por algum motivo não consegue ou porque ainda é permitido não se envolver, ter o privilégio de transmitir responsabilidade a falsas ilusões.

Precisamos nos envolver de corpo e alma na defesa de território, a começar pelos territórios corporais dos de baixo. Seja ladrão ou não (o cara tava catando moedas no chão!), linchamento não aceito ver e ficar quieto.

Só a resistência direta a esta violência, através do apoio mútuo na rua, treinamento de autodefesa, consciência dos riscos, escuta das orientações espirituais, organização coletiva (falarmos e pensarmos sobre isso, sobre estas situações), nos prepararmos, para fazer um enfrentamento que não é violência por violência, mas é nos defendermos, é criar brechas para que pessoas fujam de espancamentos ou de tiros, é se opor a covardias. Até que tenhamos capacidade de construir outras relações sociais na rua e nos territórios. Até que tenhamos força de reagir frente aos nossos inimigos reais.

Precisamos aprofundar nosso fazer político para além das urnas. Precisamos  nos cuidar nas ruas e na noite. Precisamos firmar território.

Laroye!

(*) Jornalista| @derivajornalismo

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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