Opinião
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18 de julho de 2022
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10:29

O que os japoneses ensinam sobre a destruição da casa de Caio Fernando Abreu (por Jorge Barcellos)

Casa que foi do escritor Caio Fernando Abreu está em processo de demolição. Foto: Luiza Castro/Sul21
Casa que foi do escritor Caio Fernando Abreu está em processo de demolição. Foto: Luiza Castro/Sul21

Jorge Barcellos (*)

Acabo de ler Japan 1900, de Sebastian Dobson & Sabine Arché (Editora Taschen), quando tomo conhecimento, pela matéria de Luis Gomes, de Sul21, publicada no último dia 16, de que começou a ser demolida a casa do escritor Caio Fernando Abreu. A notícia, que deveria ser motivo de vergonha para a Prefeitura que liberou a licença, para os proprietários que desejam sua demolição, para o responsável técnico que autorizou e todos os que tem interesse na demolição do casarão, não está sendo analisada em seu sentido profundo. A destruição da casa aponta para a velocidade de transformação do capitalismo na capital, para o rápido enquadramento das elites locais, especialmente as ligadas ao capital financeiro e a especulação imobiliária, no projeto de transformação da paisagem da cidade para ampliação de seus lucros. No passado, bastava uma árvore ameaçada para que um movimento em sua defesa se originasse na capital. No passado, os porto-alegrenses faziam revolução. Hoje é como no poema de Bertolt Brecht (1898-1956),”É preciso agir’, que, na versão porto-alegrense seria algo como “Primeiro levaram o Estaleiro Só/Mas não me importei com isso/Eu não morava lá/Em seguida levaram o Ginásio da Brigada/Mas eu não me importei com isso/ Eu não era brigadiano/Depois levaram o Cais do Porto/Mas eu não me importei, nunca ia lá/ Depois levaram a casa de Caio Fernando Abreu/Mas eu não me importei com isso/Porque não lia seus livros [e complete como quiser] Agora a cidade já não tem mais uma alma/Mas já é tarde/ Como eu não me preocupei com a história da cidade/Ninguém se preocupa também”.

Reprodução

 Não nos enganemos, não se trata de um caso isolado. A destruição da casa de Caio Fernando Abreu é parte do mesmo processo e da mesma natureza dos casos citados. Ele está em uma linha de continuidade que passa pela destruição do Estaleiro Só ao Ginásio da Brigada e todos os espaços que constituem referência de memória na capital. Esse processo é o da aceleração da expansão do capital sobre a cidade, a transformação do tecido da capital na maior fonte de lucro capitalista possível. No passado da capital, havia ainda uma arma estratégica, movimentos sociais organizados SEM a presença da internet. Nesse tempo, o que ligava as pessoas era o compartilhamento de lutas olho no olho. A presença nas reuniões, o movimento no espaço físico, todo este contexto revolucionário local permitia ações reivindicatórias, estimulava a prática política, possibilitava fazer revoluções. Se fosse há trinta anos atrás, haveria um movimento nas ruas. Onde hoje está o movimento em defesa de nossa memória? Nas redes sociais. E por isso fracassa frente ao capital que está nas ruas. Diz Maurízio Lazzarato em O intolerável do presente, a urgência da revolução: minorias e classes” (n-1 Edições, 2022, p.10-11): “uma vez perdida essa arma estratégica, as lutas só podem ser defensivas. Elas buscam salvaguardar aquilo de que a máquina Capital-Estado se apropria metodicamente, em encontrar resistência real. Sem revolução, o conteúdo da luta, o terreno e o timming do confronto estão nas mãos do inimigo”. 

Do ponto de vista dos autores que organizaram Japan 1900, a destruição da casa de Caio Fernando Abreu seria impensável na história japonesa. O paralelo, que parece distante, tem sua razão de ser. Enquanto que os porto-alegrenses completam apenas 250 anos de história, o Japão construiu sua história baseada na evolução de grandes cidades ao longo de mais de dois milênios e meio de anos. Porto Alegre, no entanto, tem algumas semelhanças distantes com a história que se desenvolveu em cidades daquele país: desenvolveu proporcionalmente até o século XIX uma sociedade marcada por um arquipélago de ilhas; construiu  seus valores culturais, sua identidade local e deu valor ao trabalho que permitiu a construção de uma grande cidade. Mas há uma notável diferença na evolução de uma e de outra: enquanto  nas cidades japonesas, foi dado grande valor  a memória, na capital dos gaúchos, ao contrário, recentemente vivemos um momento de apagamento da memória

Ao ler Japan 1900, fica claro a importância da memória para um povo. Hoje, como Porto Alegre, as cidades japonesas vivem o momento que o capitalismo neoliberal vive seu êxtase e os conflitos saem, como no Brasil, do campo econômico e chegam ao político, como no assassinato do ex-primeiro ministro Shinzo Abe na cidade de Nara, no Japão. No mundo, o capitalismo vem se desenvolvendo com a desagregação das culturas nacionais, a luta social e política e a exploração e desvalorização do trabalho por grandes conglomerados – inclusive japoneses – mas ainda assim, cidades japonesas são capazes de preservar seus valores universais, suas grandes instituições. Tudo o que é referência é preservado nas cidades japonesas. Em Porto Alegre, é o contrário. 

Japan 1900 é uma obra de peso: 532 páginas no tamanho 33x47cm, com 700 ilustrações em 5 quilos de livro ricamente ilustrado. A única vez que valorizamos assim Porto Alegre foi no ano de 1940, quando foi comemorado o bicentenário da capital. Sugeri a autoridades locais fazer uma obra semelhante, mas o pedido não foi aprovado. É assim em Porto Alegre: já tivemos memória, hoje ela é um problema para a expansão do capital. Japan 1900 é editado depois de terem sido publicadas obras da Taschen sobre grandes cidades como Paris, Nova Iorque, Berlin e Los Angeles. Em cada uma dessas cidades, vemos que as casas de seus grandes escritores foram protegidas da especulação imobiliária: em Paris você visita a casa de Vitor Hugo em Place des Vogues, um dos pontos turísticos mais populares da cidade; em Nova Iorque você visita a casa do escritor Edgar Allan Poe, no Bronx; na Alemanha você visita a casa de Heine, na rua Bolkerstrasse, no bairro antigo de Düsseldorf. Esta casa continua atraindo muitas pessoas, pois ela não é propriamente um museu, mas é muito viva, oferecendo festivais de poesia, palestras e leituras, lugar imprescindível para o cenário literário da Renânia. Era isso que queriam os admiradores da obra de Caio Fernando Abreu. Foram derrotados. Só Porto Alegre teima em destruir sua memória, e agora inclui no roteiro da destruição as casas onde viveram seus escritores.  

Diferente das cidades japonesas, Porto Alegre já nasceu ligada ao resto do mundo. As cidades do arquipélago não, já que Dobson & Arqué afirmam que foi somente na idade do ouro das viagens ao Japão, que inicia em 1868 quando inicia o reinado do imperador Meiji, que põe fim a ordem feudal, que é posto fim ao isolamento do país do resto do mundo que vinha há cerca de duzentos anos “Esse novo governo das Luzes vai até 1912, período em que o Japão se integra à ordem internacional, constrói sua marinha e participa de guerras importantes contra a China (1894-1895) e Rússia (1904-1905)”, afirmam os autores. É nesse período em que se consolida a arte da fotografia no Japão e que os hábitos ocidentais afetam as tradições orientais. 

Porto Alegre nunca conheceu isolamento do resto do país, ao contrário, seu porto permitiu a ligação ao interior e ao resto do país. Aqui, como nas cidades japonesas, a partir do final do século XIX, uma geração de fotógrafos se instalou e registrou os principais monumentos, aspectos da vida e da cultura da cidade até o início do século XX. Assim como Hikoma Shunnojo se tornaria um dos primeiros fotógrafos japoneses profissionais, como o fotógrafo japonês Kajima Seibei, da mesma forma os Irmãos Ferrari e Virgílio Calegari foram os primeiros fotógrafos profissionais da cidade a abrirem seus estúdios, cujas obras em nada deixam a dever aos notáveis registros dos japoneses. 

Durante esse período, a cultura japonesa procurou acompanhar o ritmo do mundo como na participação de suas equipes nos jogos olímpicos de Estocolmo, no retorno de uma expedição japonesa da Antártida e pela presença de um japonês a bordo do Titanic. Para Dobson & Arqué “ao mesmo tempo em que o país se transforma em destino turístico e, portanto, objeto predileto dos fotógrafos, é essa qualidade de destino turístico que faz com que melhore o acesso ao interior do país, o que faz com que o termo “globe-trotter”, inventado em Yokohama, defina a nova geração de viajantes pelo como os que viajam pelo “mundo todo”. Um detalhe interessante apontado pelos autores de Japan 1900 é que o escritor Júlio Verne, em sua obra A volta ao mundo em oitenta dias, diz que se levava quarenta e dois dias para ir de Londres à Yokohama, o que reduziu-se para vinte e um dias com o ingresso da Canandian Pacific Steamship Company no mercado, e depois ainda esse prazo reduziu-se para dezessete dias, num trajeto via Moscou pela ferrovia transiberiana, a famosa rede que liga a Rússia Européia ao Extremo Oriente, podendo-se daí por navio a vapor chegar até ao Japão. Porto Alegre, ao contrário, não desperta recentemente um interesse pelo acesso rápido a cidade, que acompanhou o ritmo do mundo da pior forma possível: autorizando a especulação imobiliária a destruir livremente os monumentos de memória da capital, pressionando autoridades a liberarem licenças e limites no mais curto prazo possível. Aqui, a única expressão possível é que Porto Alegre está se tornando uma “just like others”, cidade igual as outras, cheias de prédios e arranha-céus. Aqui, os escritores que chamam a atenção do mundo para a cidade tem suas casas destruídas, o que jamais aconteceria no Japão, que transformou a casa onde cresceu e viveu o escritor japonês Samu Dazai em museu na cidade de Goshogawara. 

Poderíamos listar outros pontos de perda da memória, além da casa do escritor, a partir de Japan, 1900. Dobson & Arqué apontam que o acesso a todo o território do Japão se tornou possível com a criação dos primeiros hotéis ocidentais em seus portos. O primeiro deles foi fundado em 1868 em Tóquio, no pequeno enclave estrangeiro no quarteirão de Tsukiji, com mais de cem quartos, restaurante, mas que foi destruído por um incêndio em 1872. Em 1873 é inaugurado o Grand Hotel de Tóquio, em 1890 é a vez do Imperial Hotel em Yokohama e as demais cidades de Nagasaki, Kobe e Quioto logo passam a ter grandes hotéis para atendimento dos viajantes. Aqui não. Em maio de 2021, já haviam 15 hotéis fechados em Porto Alegre, entre eles o tradicional Everest. Ali desenvolvi atividades culturais, instalando exposições históricas sobre Porto Alegre, que chamavam a atenção para a  história da cidade, propondo locais para visitas. 

Japan 1900 é uma obra notável por sua abrangência e qualidade das imagens selecionadas. Ela prova que o japonês do passado era um inovador preocupado com a sobrevivência e com a vida, capaz de observar a beleza do mundo ao redor, sensibilidade que se estendia as classes menos privilegiadas numa enorme vontade de inclusão na sociedade. Bem diferente do porto-alegrense de hoje, incapaz de perceber a beleza dos monumentos ao seu redor, das casas de grandes escritores. Quando foi que perdemos nossa sensibilidade? Quando deixamos de dar valor a nossa memória. Nesse sentido, a leitura de Japan 1900 nos permite investigar o quanto o capitalismo japonês hoje preserva ideais de civilização do passado, o que pode nos falar do poder de corrupção do capital, que existe, é claro, inclusive naquelas sociedades mais tradicionais e baseadas na defesa de notáveis valores humanos. 

Mas há uma diferença. Segundo Jacques Markovitch, ele diz do Japão o seguinte: “Todos dizem que outros milagres, além do econômico, enchem de orgulho o povo japonês. Dentre eles, o milagre de trabalhar em condições adversas e o de fazer coexistir o seu progresso material e as suas tradições. Eis uma virtude a mais na vida nacional do Japão: cultivar a boa tradição. Isso é saber escolher, saber distinguir. Saber vencer o tempo, filtrando, em sua passagem, os valores dignos de permanência.” Os japoneses souberam preservar suas tradições, isto é, souberam escolher os monumentos que queriam preservar, as obras e construções que deveriam permanecer para as novas gerações. Os porto-alegrenses não. 

Segundo os termos de Lazzarato, se o timming está com o inimigo, só resta aos movimentos sociais a defensiva. A casa de Caio Fernando Abreu dificilmente será recuperada, mas outras casas estão sob olhar atento do capital. Elas já foram mapeadas, são as casas onde organizou-se o movimento operário da cidade, as casas do movimento negro e os lugares de repressão do regime militar. Eles fazem parte das recentes rotas turísticas criadas para preservar a memória e devem serem preservadas. 

Para os especuladores de plantão, fazer desaparecer a memória literária de Porto Alegre  é transformar em escombros os lugares de vida de nossos principais escritores. Alguém duvida que não farão o mesmo, no futuro, com a casa de Erico Verissimo? E por que não com o Solar Lopo Gonçalves? Troca logo aquela casa com o poder público por um lugar longe e barato, o capital agradece sua colaboração. A Porto Alegre do futuro, se depender do mercado, será uma cidade sem história e sua skyline se confundirá com a de qualquer outra cidade de massas, sem singularidade alguma. Por que não mudar logo o nome da capital para Porto Camburiú? O que falta para a cidade entregar sua alma ao capital de uma vez por todas? 

SERVIÇO:

JAPAN, 1900
Autores: Sebastian Dobson e Sabine Arché
Editora Taschen
ISBN:978.3836573566
Disponível em Amazon.com.br e Taschen. com

(*) Doutor em Educação/UFRGS, autor de ‘O êxtase neoliberal’ (Clube dos Autores, 2021)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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