Opinião
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27 de julho de 2022
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19:07

III Conferência Internacional de Educação Superior da Unesco em Barcelona: destaques e perspectivas (por Rodrigo Lages e Silva)

Conferência em Barcelona debateu rumos da educação superior. (Foto:
 Isadora Farias dos Santos)
Conferência em Barcelona debateu rumos da educação superior. (Foto: Isadora Farias dos Santos)

Rodrigo Lages e Silva (*)

Entre os dias 18 e 20 de maio, Barcelona recebeu a III Conferência de Educação Superior da UNESCO (WHEC2022), realizada na Fira de Barcelona com diversas mesas-redondas, painéis, conferências e debates que se reuniram sob a palavra de ordem “não deixar ninguém para trás” (Leave no one behind). Uma vez que estou em uma temporada como professor visitante na Universidade Autônoma de Barcelona, aproveitei minha estada na cidade para participar do evento e trago aqui um relato dos principais debates e acontecimentos que marcaram este encontro.

Como era de se esperar, um tema recorrente no evento foi o impacto educacional da pandemia de COVID-19, especialmente, na educação superior. Diversos expositores buscaram elucidar os desafios que teremos de enfrentar globalmente para mitigar estes efeitos negativos. Entre outros pontos também muito destacados no evento encontram-se: as políticas de equidade, o acolhimento de refugiados no ensino superior – que contou com programação específica organizada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e a mobilidade estudantil internacional, pontos estes mencionados por Audrey Azoulay – Diretora Geral da Unesco em sua fala de abertura do evento.

A cerimônia de abertura contou também com as presenças de Núria Marín, presidenta da província de Barcelona, Pere Aragonès, Presidente da Comunidade Autônoma da Catalunha, Joan Subirats, Ministro das Universidades da Espanha e de Ada Colau – prefeita de Barcelona, que destacou o ensino superior como sendo um dos principais recursos para combater as fake news que alimentam a ascensão da extrema-direita no mundo.

Em relação aos prejuízos que a COVID-19 impôs ao ensino superior, Roberta J. Cordano, reitora da Gallaudet University, afirmou que os efeitos podem demorar até 20 anos para serem superados, considerando os impactos da pandemia nas matrículas da educação infantil, que foram dramaticamente diminuídas, o que significará uma geração inteira de crianças com alterações em suas trajetórias de socialização e de aquisições cognitivas, tipicamente estimuladas nessa etapa de ensino.

O professor Ka Ho Mok da Lingnan University, destacou que os efeitos negativos da pandemia em termos educacionais refletirão as desigualdades econômicas, uma vez que 84% dos estudantes dos países menos ricos estavam fora da universidade quando os estudantes dos países ricos já tinham voltado às aulas. Os números globais de como a COVID-19 impactou o ensino superior foram trazidos pelo professor indiano Jandhyala Tilak, da National University of Educational Planning & Administration, que apresentou dados informando que o COVID-19 afetou 1,6 bilhões de estudantes e 63 milhões de professores; impactou 94% dos estudantes globais; 99% dos estudantes nos países em desenvolvimento; e que em 2020 mais de 90% dos estudantes no mundo foram atingidos; sendo que e em 2021 o impacto foi muito maior nos países mais pobres, totalizando 84% dos estudantes destes países. Do ponto de vista das matrículas no ensino superior, o professor afirmou que houve apenas 20% de retenção nas matrículas realizadas durante a pandemia, e em relação a novas matrículas, os anos de pandemia representaram 32% a menos de novas matrículas em comparação com 2019. Já sobre o financiamento do ensino superior, 33% das instituições observaram diminuição no orçamento, a maioria delas nos países menos ricos.

A discussão sobre políticas de equidade foi um tema marcante no evento, com destaque à necessidade de pensar o combate às iniquidades de gênero na educação superior que se fazem presentes, mesmo considerando que o acesso à educação superior é um dos poucos indicadores sociais nos quais as mulheres têm proporção maior do que os homens. Contudo, como destacou a Diretora Geral da Unesco, Audrey Azolay, apenas um terço das vagas dos cursos de ciências, tecnologias, engenharias e matemáticas (STEM) são ocupadas por mulheres. Corroborando a percepção de que a vida acadêmica das mulheres apresenta desafios maiores do que a dos homens, incluindo limitações de trânsito entre campi por risco de violência sexual, tal como foi mencionado na mesa “Acesso equitativo e sucesso no ensino superior: o roteiro para 2030”. Na referida mesa, foram sublinhadas estratégias de cooperação entre Instituições de Ensino Superior para promoção de equidade no ensino superior, tal como a criação da World Access to Higher Education Network (WAHEN), bem como estratégias de indução da equidade por meio da sociedade civil organizada que nos EUA usou um modelo de competição entre unidades federativas para o estabelecimento e a persecução de metas de equidade, tal como relatado pela diretora da Lumina Foundation, Courtney Brown. A experiência brasileira no combate às iniquidades também foi mencionada nesta mesa-redonda por Jamil Salmi, consultor de educação terciária no Banco Mundial e referência na área, o qual saudou a presença no auditório do professor Renato Pedrosa, da UNICAMP, um dos membros do movimento que participou da proposta da Lei 12.711, de 2012, conhecida como lei de cotas. Mas nem tudo são águas tranquilas e caminho fácil na direção do progresso nesses tempos em que vivemos.

Para vergonha da comunidade acadêmica brasileira, o magnífico reitor da Universidade Federal do Ceará, professor Cândido de Albuquerque, pediu a palavra em agravo ao professor Pedrosa e contrapondo a afirmação do professor Salmi, afirmou que nenhuma lei foi modificada no Brasil e utilizando o português, língua sem tradução instantânea no evento, discorreu hipóteses sobre a necessidade de impor limites de acesso ao ensino superior, uma vez que não haveria empregos qualificados suficientes no Brasil para abranger esses profissionais. Por sorte, apesar do esforço da delegação indicada pelo Ministério da Educação em traduzir o reitor, poucas pessoas entenderam os seus argumentos, que se tornaram motivo de chiste – em nosso prejuízo – quando o professor Salmi, este sim, magnífico, lembrou que no capitalismo de economia cognitiva é a educação que cria empregos e não o contrário.

Também no campo das políticas de equidade há de se saudar a mesa-redonda que tratou de universidades indígenas, na qual a experiência canadense descortinou novos horizontes para a articulação entre saberes indígenas e práticas universitárias com a experiência de criação de uma instituição de acreditação de universidades indígenas que é gerida por um conselho formado por integrantes de diversas etnias os quais comparam a adequação dos projetos universitários tanto em termos de comparação com padrões internacionais de ensino, como de adequação metodológica aos modos de viver e de trocar conhecimento das muitas etnias que habitam o país. Nas palavras da Dra. Laurie Robinson, diretora executiva da Indigenous Advanced Education and Skills Council in Ontario (Canada), “o bem-estar do estudante está em primeiro lugar” na avaliação das universidades indígenas. Na mesma oportunidade, a professora Marie Battiste, da University of Victoria, salientou que “ os saberes indígenas não existem pra fazer universidades parecerem inclusivas. É preciso que eles estejam conectados com vivências indígenas que é onde esses conhecimentos estão enraizados”.

O acesso de estudantes refugiados no ensino superior ganhou diversos painéis e mesas, além de uma exposição de fotos e de um encarte próprio no evento. O tema transversal destes espaços foi a meta #15by30 que prevê que, até 2030, 15% das pessoas refugiadas tenham acesso à educação superior, hoje esse número é de menos de 5%. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é importante dizer, já está empenhada nesse desafio com editais de acesso diferenciado para pessoas com status de refugiadas ou portadoras de visto humanitário desde 2018, tendo sido a segunda universidade do Brasil a empreender ações desse tipo, as quais atualmente já são uma realidade em diversas outras Instituições de Ensino Superior.

As discussões sobre o acolhimento desses estudantes centraram-se nos desafios do letramento digital e da língua de acolhimento, além da necessidade de as universidades promoverem tanto programas intermediários entre o ensino médio e o ensino superior, como programas de acompanhamento após o ingresso. Na visão de Jean Marie Schomwe, advogado que fez sua formação como estudante refugiado no Kenya, é preciso incluir os estudantes como parte do desenho e da execução de políticas destinadas a eles. De acordo com Jean, o lema no Kenya é “nada para refugiados, sem refugiados.” E que quando dizem que é mais rápido promover ações sem o debate com as pessoas envolvidas, ele considera que “tudo para os refugiados, mas sem os refugiados, é contra refugiados”. Como um dos coordenadores, junto com a professora Pâmela Marconatto, da Cátedra Sérgio Vieira de Mello /UFRGS-ACNUR, sinto que nosso trabalho está em consonância com o que foi apresentado nesse evento, e tenho a alegria de dizer que estamos trabalhando para que a política de acolhimento de estudantes em situação de refúgio da UFRGS seja construída junto a eles e às comunidades que os representam, espírito que vem marcando nossa atuação através do Bará, projeto de acompanhamento desses estudantes no qual eles têm protagonismo e que vem nos ensinando muito sobre como construirmos uma experiência universitária mais inclusiva.

No que se refere à mobilidade estudantil internacional, um dos elementos apontados como uma conquista do período pandêmico que não deve ser descontinuada com a volta à presencialidade é a mobilidade internacional virtual, isto é, a possibilidade de que os ambientes digitais sejam utilizados para trocas e colaborações entre estudantes de graduação e grupos de pesquisa de diferentes países. Tal advertência foi realizada por Emma Sabzalieva, diretora do Instituto de Educação Superior na América Latina e no Caribe(IESALC). Já o professor Antônio Nóvoa que coordenou a realização do relatório “Reimaginando o futuro da educação superior”, lançado em 2020, frisou que a ciência aberta (Open Science) e a cidadania científica global são elementos fundamentais que devem pautar um novo contrato social que reposicione as universidades no espaço público e que não prescinda da presença física dos estudantes nos campi, concebida por ele como o motor das grandes pautas progressistas da atualidade.

Além da tomada da ciência como patrimônio social e como valor a ser conservado na esfera pública, a cidadania global, nas palavras da professora Vidya Yeravdekar, representante da Symbiosis International University, é uma dimensão imprescindível à inovação. A construção de um ambiente de integração centrado na função social da ciência, no qual os estudantes possam colaborar sem o constrangimento de fronteiras nacionais, linguísticas ou econômicas foi apontado como elemento fundamental para o cumprimento das metas globais de desenvolvimento sustentável (SDGs) e para tanto, é indispensável a autonomia universitária, tal como asseverou a professora Sylvia Schmelkes, presidenta do Instituto nacional para Avaliação da Educação do México, na conferência de abertura do evento.

Embora o evento tenha reunido a comunidade acadêmica em importantes debates e, com raras exceções, num espírito colaborativo, progressista e de compromisso com aqueles e aquelas sobre os quais recai de maneira mais pesada o ônus das desigualdades estruturais que organizam o mundo, não faltou o aspecto de contestação no encontro que também observou a manifestação de diversos atores da sociedade civil, os quais protestaram em relação ao fato de o evento desconsiderar as pautas dos trabalhadores da educação e denunciaram o que entendiam como um alinhamento da UNESCO com os interesses do capital internacional. Houve protesto com faixas e distribuição de uma carta aberta, subscrita, dentre outras diversas organizações, pelo ANDES-Sindicato. Cabe mencionar que o evento contou com diversos patrocinadores privados com atividades associadas à educação, mas com finalidades comerciais.

Temos visto muitos agentes sem tradição de compromisso com a educação buscarem se inserir de maneira pouco construtiva nesse campo, induzindo falsas dicotomias, como se o ensino superior estivesse em competição com a educação básica ou de que houvesse uma contradição entre ciência e saúde, ou entre saúde e economia, ou entre ensino superior e mercado de trabalho, ou entre desenvolvimento sustentável e desenvolvimento tecnológico. Por isso que eventos globais desse porte cumprem sua função, eles servem como grandes caixas de ressonância de princípios e conceitos básicos, que não deveriam ser alvo de polêmicas, tais como: equidade, finalidade social e compromisso democrático da educação. Além disso, eventos como esses servem como espaços de reflexão sobre o que fizemos e o que deixamos de fazer nos últimos anos, e servem também para tomarmos consciência das urgências e dos desafios que temos pela frente. Nesse sentido, com todas as críticas – muitas delas pertinentes – que se pode levantar em relação a conferências desse porte e dos interesses que as rodeiam, o encontro em Barcelona cumpriu seu propósito e deixou muito evidente os temas inadiáveis que temos de enfrentar. Fica a se lamentar a pouca participação de instituições e de representantes das políticas educacionais brasileiras. Por aqui o trabalho de reconstrução que temos pela frente é imenso, maior, porém, são a nossa dedicação e a nossa resiliência.

(*) Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação e Programa de Pós-graduação em Educação. Coordenador do grupo de pesquisa INOMINAAR – Estudos sobre aprendizagem INventiva, saberes NÔmades, devires MInoritários, cognição eNAtiva e ARtesanias docentes

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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