Opinião
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19 de julho de 2022
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07:39

Desconfinamento (Coluna da APPOA)

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Gerson Smiech Pinho (*)

Quando um mergulhador adentra as profundezas do oceano, precisa tomar algumas precauções para poder retornar à superfície. A passagem de um ambiente a outro não pode ocorrer de forma abrupta, pois a diferença de pressão pode conduzir a complicações bastante significativas. É fundamental que o trânsito aconteça de forma gradual e cuidadosa, levando em conta as alterações e mudanças entre os distintos espaços.

No decorrer do último ano, temos experimentado a passagem das profundezas de longos meses de confinamento para o gradativo retorno às atividades em presença, possibilitado pelos momentos de arrefecimento da pandemia de COVID associados à disseminação da vacinação. Pouco a pouco, a grande maioria das pessoas têm se encorajado ao reencontro físico e a compartilhar espaços coletivos. Paralelamente, em meio a esse período de retomada do cotidiano fora da reclusão, tem-se presenciado alguns efeitos que o demorado intervalo de confinamento ocasionou.

No que se refere às crianças e aos jovens, o longo tempo de privação da convivência cotidiana com seus pares, especialmente nas escolas, certamente não se deu sem prejuízos importantes. A subtração repentina dos momentos de contato em presença – como o recreio, o lanche, as festividades e os passeios – acabou por impor sua contrapartida. Nas escolas, nos consultórios e nos serviços de saúde que se ocupam da infância e da adolescência, temos testemunhado o incremento de situações de isolamento, manifestações fóbicas no retorno à escola, angústia frente ao distanciamento da família, situações de difícil reconquista de laços com colegas e, inclusive, evasão escolar. Estes fenômenos dão mostras do quanto, para muitas crianças e adolescentes, a passagem do confinamento à retomada do convívio não tem acontecido sem um importante trabalho psíquico, ainda que tenha sido muito desejada.

Além disso, tais manifestações evidenciam o quanto o estabelecimento de laços com os pares não é um processo que aconteça de modo automático e instantâneo, mas se edifica no decorrer dos anos da infância e adolescência. Inclusive, pode-se afirmar que uma das conquistas mais significativas no desenvolvimento de uma pequena criança corresponde à possibilidade de relação e de convívio com seus pares. O encontro com o semelhante não implica somente uma nova aprendizagem ou aquisição, mas acarreta uma mudança de posição do sujeito consigo próprio e com o laço social. Dada a importância desse processo, não são raros certos impasses na constituição dos primeiros contatos entre os pequenos. Muitas crianças anseiam, sem sucesso, estabelecer um vínculo com seus pares; outras constituem laços de acentuada dependência ou, ainda, rejeitam ativamente qualquer relação com outras crianças.

Na criança pequena, a ligação fraterna que se estabelece com os pares é paralela ao reconhecimento de si e a formação do valor da imagem do próprio eu. O coleguinha de sala e o irmão, por estarem em uma relação de horizontalidade com a criança, oferecem a ela uma imagem repleta tanto de semelhanças quanto de diferenças, as quais permitem situar seu próprio lugar no discurso e no laço social. Nesse processo, o papel que cabe aos adultos é fundamental, pois são eles que fornecem as referências que permitem organizar a relação com o semelhante. Pais, mães e professores constantemente se vêem às voltas com como conduzir as nem sempre tranquilas relações entre irmãos, colegas e amigos pequenos. Esta relação fraterna inicial fornece a primeira base de socialização, constituída com apoio na diferença, através da alteridade que outorga a cada um o lugar que lhe cabe. 

É verdade que a pandemia de COVID transformou a relação inaugural das crianças com o mundo exterior de modo radical. O reconhecimento dos impasses e dificuldades impostos pela atual conjuntura histórica, sem negá-los ou desprezar sua significação, constitui elemento fundamental na busca por formas de lidar com a travessia desse novo momento.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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