Opinião
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23 de julho de 2022
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10:31

Cinquenta tons de China (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

Foto: Christian Lue/Unsplash
Foto: Christian Lue/Unsplash

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

“America is moving — moving forward — but we can’t stop now.  We’re in competition with China and other countries to win the 21st Century.”
(Joe Biden, Remarks by President Biden in Address to a Joint Session of Congress, 29/04/2021)

Cinquenta Tons de China

Há cinquenta anos, Henry Kissinger, o ex-Secretário de Estado dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford, liderou a estratégia de aproximação entre os Estados Unidos (EUA) e a China, durante as administrações de Nixon e de Mao Zedong. Ele e sua contraparte chinesa, o também influente e brilhante Zhou Enlai, pavimentaram o caminho para que o gigante asiático “abraçasse a globalização”. Aparentemente, seus resultados foram mais do que satisfatórios, na medida em que a China se consolidou como a segunda maior economia do mundo em preços correntes de mercado – e a maior em preços internacionais – além de líder na exportação de bens

Conforme descrito pelo próprio Kissinger no livro “On China”, na perspectiva estadunidense, o fortalecimento da China, por meio da expansão dos vínculos comerciais com o Ocidente, permitiria deslocar seu eixo de relações do arco de influência da União Soviética. Adicionalmente, a expectativa era de que a expansão econômica do gigante asiático permitiria criar uma economia moderna, com uma ampla classe média consumidora. Esta, por sua vez, seria a ponta de lança para a transformação política do país. Acreditava-se, em linha com as teorias de modernização desenvolvidas nas décadas de 1950 e 1960, que a transição de sociedades tradicionais para as “modernas”, tipicamente capitalistas, imporia a adoção de variantes de democracias constitucionais aos moldes ocidentais. Portanto, uma das formas de induzir mudanças de regime no contexto da Guerra Fria seria por meio da “exportação do capitalismo”. No caso da China, importou-se o dinamismo típico do capitalismo, porém com a manutenção do poder político centralizado no Partido Comunista da China (PCCh).

Em um discurso com o título sugestivo de “The Administration’s Approach to the People’s Republic of China”, o atual Secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, reafirmou a decepção da elite com o desvio de rota tomado por Xi Jinping e seus antecessores, os quais rejeitaram o caminho previsto pelos teóricos da modernização. Os estrategistas chineses optaram por não perseguir os valores liberais ocidentais, assumidos como superiores e, mais ainda, como traduções universais das aspirações humanas. Tampouco adotaram sua tradução institucional na forma histórica concreta das democracias constitucionais. Para Blinken, os chineses interpretaram equivocadamente as sucessivas crises – econômicas, societais e políticas – das democracias ocidentais nos últimos anos como um sinal inequívoco de fraqueza. E, por decorrência, decidiram dar maior ênfase ao controle interno e à assertividade externa. Nestes termos, Blinken sugere que a China contesta as instituições democráticas internacionais [1] e, por força da lógica, representa uma ameaça aos EUA.

O desconforto com a ascensão chinesa se acentuou na Era da Turbulência, período de uma década e meia que se inaugura com a crise financeira global (2007-2009). Nestes anos, a China avançou relativamente mais em todas as dimensões econômicas, militares, tecnológicas e políticas. Assim, por exemplo, seu produto interno bruto (PIB) triplicou em dólares internacionais (paridade poder de compra): de US$ 8,9 trilhões (2007) para US$ 26,7 trilhões. Em 2017, a renda da China ultrapassou a dos EUA por esta métrica. Esta capacidade econômica permitiu à China consolidar-se como um dos líderes nos investimentos em inovações tecnológicas, atrás apenas dos EUA, e com um montante superior à soma dos gastos de Japão, Alemanha, Coreia do Sul e França; o mais destacado no registro de novas patentes e na acumulação física de capital (novos investimentos em infraestrutura, maquinário e edificações); e o segundo com o maior volume de gastos militares.

Ainda em termos comparativos, em 1980, o PIB chinês (em paridade poder de compra) equivalia à 4% da soma do PIB dos países do G7 (Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido). Atualmente, tal proporção chega a 60% e, seguindo os dados do FMI, encerrará esta década com tal proporção acima de 70%. Em termos de exportações de mercadorias, o salto chinês foi igualmente intenso, com sua participação avançando de pouco mais de 1%, no começo dos anos 1980, para os atuais 15%. O país é responsável por ¼ de toda a produção mundial de manufaturas. Além viabilizar a montagem e a venda nos mercados externos de produtos desenvolvidos por empresas ocidentais e de seus vizinhos asiáticos, as próprias empresas chinesas, em áreas de maior complexidade tecnológica, estão pressionando suas concorrentes e ofertando mercadorias de alto conteúdo tecnológico e relativamente mais baratas. Sua estreita ligação econômica com o mundo Ocidental gerou a ampla disseminação de seus ganhos de eficiência. Hoje, o crescimento da renda chinesa contribui com quase 1/3 da variação da renda mundial

A “Flexibilidade Nixoniana”

Kissinger é uma das figuras mais influentes do establishment estadunidense. Com quase um século de vida, poucas pessoas transitam com tanta desenvoltura nos corredores do poder global. Sua voz segue sendo ouvida pelos líderes políticos e empresariais. E suas visões contribuem para a transformação dos processos decisórios há pelo menos seis décadas.

Em manifestações recentes,  Kissinger expressou sua preocupação com os riscos de que a escalada de confrontação retórica e política entre os Estados Unidos (EUA) e a China – ou a Rússia – produza resultados profundamente negativos para a humanidade, uma “catástrofe comparável à Primeira Grande Guerra Mundial”. Em sua perspectiva, a política doméstica de seu país contamina, em excesso, a visão sobre a China, cuja presença como um poder global deveria ser compreendida como parte integral – e normal – da realidade contemporânea. Se, por um lado, o presidente Biden e parte expressiva do establishment político do seu país saúdam a concorrência com a China, e dizem evitar conflitos; por outro, demonstram baixa tolerância diante da possibilidade de que o rival estratégico acumule mais capacidades potenciais e formas concretas do exercício do poder do que os EUA. O segundo lugar não faz parte do horizonte estratégico em uma sociedade que cultua o sucesso individual e despreza a derrota

Com uma sociedade cada vez mais polarizada e um campo conservador absorvido pelos mares turbulentos das teorias conspiratórias, a democracia estadunidense respira por aparelhos. Ainda assim, sua elite insiste na autoimagem de uma nação indispensável. Ao comemorar os 75 anos da sua Agência de Inteligência (CIA), uma semana após os festivos patrióticos do 4 de julho, Biden reafirmou o mantra: “A América é mais forte quando lideramos não apenas pelo exemplo do nosso poder, mas pelo poder do nosso exemplo. É por isso que a maioria das nações nos segue: o poder do nosso exemplo.”

No plano interno, o debate dos últimos anos, particularmente após a invasão do Capitólio, em 06 de janeiro de 2021, não autoriza a convicção de que a democracia estadunidense seja um exemplo positivo para o mundo. O ativismo político da Suprema Corte do país, que coloca em xeque a jurisprudência consolidada nas últimas décadas sobre garantias de direitos individuais, revela-se como mais um sinal preocupante. No âmbito internacional, o exercício da força sobre os que se negam a seguir o seu dictum imperium aproxima-se mais da perspectiva da diplomacia do “big stick” do que do “internacionalismo liberal”. A hegemonia estadunidense foi erigida a partir do acúmulo de musculatura econômica, capacidades tecnológicas e militares e do apetite por manter sua posição hierarquicamente superior na arena internacional. 

O belicismo estadunidense, que se expressa em centenas de intervenções militares no exterior, é sempre justificado a partir de valores morais considerados superiores. Uma das definições mais simbólicas neste sentido foi dada pelo presidente Barack Obama em seu discurso ao receber o Prêmio Nobel da Paz. A “América” teria o direito de usar a força no exercício de sua hegemonia, pois é a “… nação indispensável … (nós) permanecemos firmes e vemos mais longe no horizonte futuro do que outros países” [2]. Esta autopercepção nacional remonta às origens puritanas da nação, quando o líder John Winthrop [3] enaltecia os colonizadores pioneiros, que estariam criando “uma cidade nas colinas”, uma luz que guiaria o mundo.

O exercício duro do poder estadunidense sempre encontra abrigo na retórica de seus líderes, que o justificam em nome da preservação da paz perpétua kantiana. Kissinger não escapa desta armadilha e admite ser necessário evitar a hegemonia da China ou de qualquer outro país e, com isso, preservar a “democracia liberal”. Ainda assim, não considera positivo manter uma “confrontação permanente” com rivais como a Rússia ou a China. O veterano internacionalista sugere que Biden e os demais líderes de seu país sigam a “flexibilidade nixoniana”, vale dizer, reduzir pontos de conflito ao invés de acentuá-los. Tal argumento aparece em seu novo livro “Leadership: Six Studies in World Strategy”, que descreve Nixon como uma liderança pragmática e positiva, que buscou retirar o país do Vietnã e viabilizar a aproximação com a China, a despeito das pressões políticas em contrário, na medida em que vivia-se em conflito com o mundo comunista liderado pela União Soviética.

Kissinger não comunga da perspectiva de que a política externa do seu país deva seguir a orientação ideológica de defesa da universalidade dos valores ocidentais (ou estadunidenses). Este caminho ampliaria os riscos de confrontos e de guerras, no lugar de pavimentar espaços para a acomodação entre os grandes poderes globais. Se o mundo será multipolar, há que se conviver com distintos sistemas de valores e instituições. Em recente entrevista ao prestigioso semanário Der Spiegel, Kissinger foi questionado sobre a perspectiva de que as relações sino-estadunidenses sejam encaradas como uma luta entre autoritarismo e democracia. Sua resposta não deixa dúvidas: “A democracia genuína é, para mim, o sistema mais desejável. Mas, nas relações do mundo contemporâneo, se (o sistema democrático) se tornar o objetivo principal (da política externa estadunidense), leva-se a um impulso missionário que pode resultar em um conflito militar do tipo Guerra dos Trinta Anos.”. O mesmo argumento está no centro do livro de 2018 do cientista político John Mearshimer:  “The Great Delusion – Liberal Dreams and International Realities”.

Até aqui, a perspectiva de Kissinger não tem sido incorporada plenamente pela administração de Joe Biden. O presidente e seu Secretário de Estado, Anthony Blinken, não perdem a oportunidade de seguir a linha do internacionalismo liberal e afirmam que o enfrentamento dos rivais China e Rússia se converteu em uma disputa entre o bem (“democracias”) e o mal (“autoritarismos”). De acordo com Blinken: “… Pequim acredita que seu modelo é o melhor; que um sistema centralizado e liderado por um partido único, é mais eficiente, menos confuso e, em última análise, superior à democracia. Não buscamos transformar o sistema político da China. Nossa tarefa é provar, mais uma vez, que a democracia pode enfrentar desafios urgentes, criar oportunidades, promover a dignidade humana; e que o futuro pertence a quem acredita na liberdade e, portanto, que todos os países serão livres para traçar seus próprios caminhos sem coerção.”

Se a retórica é de não interferência em assuntos domésticos chineses, a prática estadunidense pode ser percebida como diametralmente oposta. São exemplos claros desta realidade a “guerra comercial (e tecnológica)” iniciada por Trump, que segue em curso, as renovadas advertências sobre Taiwan e a busca de induzir os seus vizinhos a um alinhamento econômico, político e  militar com os EUA, de modo a criar um arco regional de contenção do processo de ascensão chinesa. Com isso, busca-se, também, manter as atenções estratégicas do Império do Meio no âmbito regional. Portanto, não faltam sinais de pressão sobre o establishment chinês, os quais não podem ser ignorados diante do histórico estadunidense de trabalhar para mudar os regimes políticos de nações que contestam o status quo.

Recentemente, o ex-assessor de Trump, John Bolton, ex-embaixador de seu país junto às Nações Unidas, durante a administração G. W. Bush, e conselheiro de Trump em Segurança Nacional, admitiu seu envolvimento direto na organização de golpes de estado em outros países. Não se trata exatamente de uma novidade, ainda que agora expressa de uma forma explícita e quase ingênua por um ator de alto calibre da engrenagem estadunidense de intervenção na soberania de outros países. Nestes marcos, os registros históricos já públicos revelam abusos de toda a sorte cometidos por órgãos de governo estadunidenses contra indivíduos e instituições de outros países. A interferência em assuntos domésticos de outras nações, pela via militar ou por meios alternativos, particularmente quando conduzidos pela CIA, são amplamente documentados e analisados pelas pesquisas acadêmicas

O cercamento da Rússia pela OTAN indica não haver limites na estratégia estadunidense de contenção de seus rivais. Ex-embaixadores dos EUA na ex-URSS/Rússia e analistas políticos, como o influente John Mearshimer, afirmam que a guerra em curso foi provocada pelos EUA. Para Mearshimer: “… os Estados Unidos impulsionaram políticas para a Ucrânia que Putin e seus colegas veem como uma ameaça existencial ao seu país […]”. Por isso mesmo, observadores céticos e estrategistas chineses não compram as promessas de Biden e Blinken pelo seu valor de face. Ambos dizem não trabalhar pela mudança no regime político chinês. De fato, seu trabalho é o de conter qualquer ameaça à hegemonia estadunidense: mudar, substituir ou eliminar quem ousa contrariar o exercício pleno do seu poder global é uma contingência inevitável, um meio para preservar o imperium.

Notas

[1] “We are not looking for conflict or a new Cold War.  To the contrary, we’re determined to avoid both. We don’t seek to block China from its role as a major power, nor to stop China – or any other country, for that matter – from growing their economy or advancing the interests of their people. But we will defend and strengthen the international law, agreements, principles, and institutions that maintain peace and security, protect the rights of individuals and sovereign nations, and make it possible for all countries – including the United States and China – to coexist and cooperate. Now, the China of today is very different from the China of 50 years ago, when President Nixon broke decades of strained relations to become the first U.S. president to visit the country.  Then, China was isolated and struggling with widespread poverty and hunger. Now, China is a global power with extraordinary reach, influence, and ambition.  It’s the second largest economy, with world-class cities and public transportation networks.  It’s home to some of the world’s largest tech companies and it seeks to dominate the technologies and industries of the future.  It’s rapidly modernized its military and intends to become a top tier fighting force with global reach.  And it has announced its ambition to create a sphere of influence in the Indo-Pacific and to become the world’s leading power. China’s transformation is due to the talent, the ingenuity, the hard work of the Chinese people.  It was also made possible by the stability and opportunity that the international order provides.  Arguably, no country on Earth has benefited more from that than China. But rather than using its power to reinforce and revitalize the laws, the agreements, the principles, the institutions that enabled its success so that other countries can benefit from them, too, Beijing is undermining them.  Under President Xi, the ruling Chinese Communist Party has become more repressive at home and more aggressive abroad.”

[2] “It is the threat of the use of force [against Iraq] and our line-up there that is going to put force behind the diplomacy. But if we have to use force, it is because we are America; we are the indispensable nation. We stand tall and we see further than other countries into the future, and we see the danger here to all of us.” (Barack Obama, Discurso na Cerimônia de Recepção do Nobel da Paz).

[3] John Winthrop Dreams of a City on a Hill, 1630 (http://www.americanyawp.com/reader/colliding-cultures/john-winthrop-dreams-of-a-city-on-a-hill-1630/). 

 

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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