Opinião
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17 de junho de 2022
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09:05

Um longo tempo de juros altos (por Flavio Fligenspan)

Cartazes sobre alta dos alimentos na Avenida Paulista, em São Paulo. (Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas)
Cartazes sobre alta dos alimentos na Avenida Paulista, em São Paulo. (Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas)

Flavio Fligenspan (*)

A economia americana tem convivido com uma taxa de inflação muito alta para seu padrão histórico, atualmente mais de 8% acumulada nos últimos 12 meses. Sem dúvida, trata-se de uma inflação elevada para o padrão de uma economia desenvolvida, que altera as relações econômicas entre empresas e abala o orçamento das famílias, causando desequilíbrios significativos e impondo uma nova ordem de perdedores e ganhadores deste processo, o que os economistas chamam de mudança de preços relativos.

O fenômeno que também aconteceu na Europa foi desencadeado pela desorganização de vários mercados com o surgimento da pandemia e, não menos importante, com a resposta que a política econômica deu ao apoiar maciçamente famílias e empresas diante da crise sanitária. A invasão da Ucrânia pelas tropas russas no final de fevereiro deste ano só agravou o problema, ao encarecer o petróleo e derivados e os grãos, como milho e trigo, além dos fertilizantes. 

Diante deste quadro, discute-se desde pelo menos a metade de 2021 se o Banco Central (FED) americano já deveria ter começado um ciclo de alta dos juros para combater a inflação; claro, para quem acredita que toda inflação deve ser tratada com este instrumento. Num primeiro momento, o FED não fez o movimento esperado, argumentando que entendia a inflação como um fenômeno transitório, muito ligado à pandemia. Assim, o controle da pandemia recolocaria tudo no seu lugar, respeitando-se algum hiato temporal. Em outras palavras, a inflação seria causada mais por forças momentâneas de oferta, excepcionais, e menos por excesso de demanda; e este desequilíbrio seria naturalmente corrigido com o tempo, mesmo admitindo-se que correções desta ordem trazem alguns custos não recuperáveis para diversos agentes. Isto é, algumas mudanças de preços relativos sempre se verificam nestas situações.

Ocorre que, pelo menos no caso americano, os estímulos foram suficientemente grandes para alterarem o jogo de forças no mercado de trabalho e também influenciarem um aumento de demanda em vários setores. No decorrer de 2022, com a persistência da inflação elevada e com a pressão política sobre o Governo, o FED abandonou a interpretação sobre a transitoriedade e começou um processo de retirada de estímulos e elevação dos juros. O debate então se deslocou e as perguntas mais importantes passaram a ser: até que ponto os juros podem subir e até quando eles permanecerão elevados. O que está por trás destas perguntas é uma discussão sobre acertar a dose do remédio; há que se conter a inflação, mas não se pode exagerar e chegar a provocar uma recessão, como já ocorreu no passado. O objetivo passou a ser o “pouso suave” da atividade, o que exige muita sensibilidade, muita técnica e muita sorte. Paira no ar uma avaliação ou mesmo uma acusação de que o FED foi leniente – ou até mesmo irresponsável – e não tomou a atitude correta na hora certa. Ele teria perdido duas batalhas, a das expectativas dos agentes, o que também influencia a inflação futura, e a da credibilidade.

Mesmo que agora finalmente o FED tenha se movido na direção do que o pensamento tradicional preconizava, o fato de ter demorado a agir, associado à incerteza sobre a intensidade e a duração das medidas, permite uma dúvida a respeito de até que ponto ele realmente acredita nos efeitos positivos da alta dos juros. Demorou porque errou ou demorou porque não tem certeza? Em contraposição, no Brasil parece que não há dúvida, o Banco Central (BC) tem subido os juros desde março de 2021, perfazendo um caminho de 2% ao ano para 13,25% ao ano, a taxa definida na reunião desta semana. Trata-se de uma alta significativa e que, tudo indica, está no fim, mas ainda não acabou; espera-se mais um aumento em agosto e um período de vários meses até começar uma trajetória de queda.

Há quem elogie o BC por isto, inclusive lembrando que ele foi uma das primeiras autoridades monetárias do mundo a começar a subir os juros. Aqui a discussão sobre os possíveis efeitos recessivos das medidas tem menos força do que nos Estados Unidos. A sociedade parece anestesiada pelo clima político pesado e por ter se acostumado a um nível de atividade fraco desde 2014. Porém, independentemente da intensidade da discussão, a alta forte dos juros parece já começar a surtir efeito, a ponto de a maioria das projeções indicar um segundo semestre de 2022 em desaceleração e um comprometimento do crescimento do PIB em 2023. Como se sabe, os efeitos da alta dos juros sempre aparecem com defasagem de pelo menos três trimestres sobre o nível de atividade e os preços. Ou seja, ainda vem muita notícia ruim pela frente sobre a produção industrial, as vendas do comércio e serviços e, principalmente, o mercado de trabalho.

Chama atenção que desde fevereiro se observam quedas sucessivas da produção industrial de produtos alimentares e das vendas dos Hiper e supermercados. Expressa-se assim, pelas estatísticas do IBGE, o que se vê na rua: o aumento da pobreza, as dificuldades das famílias para gerar renda no mercado de trabalho e a corrosão dos seus rendimentos pela inflação. As necessidades mais básicas, ligadas à alimentação, não são atendidas. Criam-se vagas no mercado de trabalho, mas cresceu muito a informalidade e a subocupação, e, com elas, caiu o rendimento médio real. Não há otimismo possível na análise, mas o BC e o mercado financeiro têm certeza do caminho adotado: juros muito altos e por um longo tempo para combater inflação de oferta.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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